Meu olhar: A Escrava, a Esposa, a Puta, A invisível /Velada

 

tania navarro swain

 

Ela tinha 21 anos. Ela era lésbica e linda. Arrancaram-lhe os olhos, as orelhas, a pele do rosto, o couro cabeludo. [1] Esta imagem hedionda me assombra, é o espanto, a dor, a revolta, a indignação, práticas de insondável crueldade. Este fato me horripila e habita meus sonhos. Se  o ódio fosse respondido da mesma maneira, não haveria mais patriarcado

 O feminicído agora não basta, é preciso inventar  requintes de crueldade para demonstrar um poder que se mantém pela violência. A repercussão foi pouca, quem se importa, nesta confraria de homens ? O jogador de futebol, estuprador, faz todas as manchetes e acaba liberado.

Este silencio é espantoso e ao mesmo tempo não o é: no mundo patriarcal, as lésbicas são um desafio, um perigo, um modelo que não deve e não pode ser seguido, mostrando uma  possibilidade de ser, inconcebível em algumas sociedades ou regiões .

O ódio patriarcal não tem limites, só comparável ao medo de perda de seu domínio sobre as mulheres. As lésbicas desafiam este poder, pois são indiferentes aos homens e suas normas e exigências. É preciso eliminá-las, mutilando, quebrando, estuprando, queimando, tudo é instrumento para varrê-las dos domínios patriarcais. Não é aceitável este exemplo que mostra às mulheres outros caminhos fora do domínio patriarcal

A lésbica se mescla às figurações do ser mulher, oprimida pela invisibilidade, destruída, discriminada, excluída quando ousa se mostrar. Ou simplesmente ignorada, afastada com um revés de mão para marcar sua insignificância. Atenção, não se aproxime, ela é contagiosa.

O que tem em comum a escrava, a esposa, a puta, a mulher invisível/ velada?

A liberdade tolhida, amordaçada, cadeias físicas ou invisíveis com o mesmo resultado. Limites impostos por um patriarcado impiedoso, que invoca deus ao escravizar, estuprar, traficar,  vender, comprar, trocar seres humanos. Pois são feitos “à imagem e semelhança”.

A escrava

O ápice do domínio, do assujeitamento. Comprada, seu corpo é pasto para senhores, filhos, capatazes, feitores, qualquer homem que a adquira como mercadoria, coisa, objeto, sexo a ser usado/ molestado sem nenhum limite. O deus cristão os apoia, faz parte da criação divina existirem seres inferiores para servir a brancura da pele, para satisfazer os instintos “naturais” dos homens.  Como no nazismo, criam seres sub-humanos, corpos existindo apenas para seu prazer, mão de obra grátis por toda uma vida.

Homens repugnantes, o olhar lúbrico, os dentes podres, ventres proeminentes, higiene precária, estes são os homens, que disputam a compra da “mercadoria” fresca, apregoada aos gritos pelo mercador. Esta caricatura (não seria realidade?) reflete em seus olhos o pavor e o desespero destas meninas e mulheres, nuas, expostas, agora apenas fêmeas, sem individualidade, sem nome,  em leilões infectos, no deboche dos risos e gargalhadas, nos dedos apalpando ou apontando detalhes anatômicos.

 Mas  estes são homens brancos, ricos ou empobrecidos, mas que tem o “precioso” pênis que os distingue, que lhes dá poder sobre as meninas e mulheres em geral e as negras especialmente,  a eles entregues, pasto para a luxúria, campo aberto para a violência.

A cultura do estupro no Brasil já havia sido organizada pelos primeiros colonizadores, que tomavam/ estupravam as índias a seu bel prazer. Foi fortalecida pela escravidão.

Mulheres disponíveis, corpos vendidos, trocados, violentados dia após dia, desde o transporte nos navios negreiros,  noites insones à beira do suicídio, morte anunciada pelo rasgar das carnes, pela punição do senhor, desespero de uma vida enjaulada, apodrecida em seu âmago. Trezentos e cinquenta anos no Brasil, outros tantos nos Estados Unidos e em outros locais onde a escravidão era e é ainda, normal. Na atualidade, estima-se 50 milhões de pessoas em regime análogo à escravidão no mundo,( compreendida também como trabalho e casamentos forçados) das quais 22 milhões de mulheres e meninas– como não podia deixar de ser- em casamentos coagidos.[2]

Nas cidades brasileiras, as escravas eram obrigadas a se prostituir para trazer uma renda à casa senhorial, para suas donas ou donos, senão.... Procuravam vender comida, artefatos, mas resta que seus corpos eram a garantia de ganhos para senhores/ senhoras inúteis.

Além dos castigos físicos, do trabalho árduo, as escravas  tinham ainda a sobrecarga de sofrer a violência sexual que rondava em toda parte, no campo, na senzala, na casa senhorial, nas ruas. Além dos estupros previsíveis, das mulheres os filhos são arrancados, levados por seus “donos” aos mercados humanos,  hediondos locais de humilhação, de menosprezo, de horror.

Épocas sombrias, patriarcado omnipresente, não é à toa que o fim da escravidão gerou a guerra civil americana, no conluio dos senhores do sul para manter o status quo.  A irmandade masculina foi quebrada pela guerra de secessão, mas o estigma da pele negra permaneceu em toda parte aqui e acolá.

Talvez a escravidão seja o crime mais horrendo que criou a humanidade, seja ela qual for, grega, romana, africana, brasileira, americana, asiática. Não há limites para a maldade que se derrama sobre seres humanos cativos, amedrontados, desprovidos de sua cultura, de sua linguagem.  Às mulheres negras, o dano maior, transformadas em orifícios a serem penetrados, últimas na escala do humano pois todos sabem que um homem negro é superior à uma mulher negra.

No Brasil não houve guerra para terminar a escravidão, e sim um decreto assinado por uma mulher, a princesa Isabel, cujo papel é minimizado por ser mulher, dotada, porém de uma coragem sem par para enfrentar senhores de escravos.

O menosprezo persiste, entretanto, hoje, nas cidades, nos vilarejos, nos locais de trabalho similares à cenários de escravidão; trabalho para os homens, as  mulheres são levadas para “servir” aos trabalhadores, aos chefes e seus acólitos.

As mulheres negras ainda são vistas como desfrutáveis, como inferiores, sobre as quais incide o desejo brutal; no imaginário masculinos a escravidão deixou a marca de fogo que assombra as mulheres negras e faz delas presas preferenciais.

Que homens são estes, que espécie bestial andando em duas pernas, balançando, coçando os genitais sem vergonha, com orgulho de sua superioridade? Na escravidão, estavam no paraíso, qualquer um era senhor, esterco, porém, de uma divindade criada para justificar e promover sua existência maléfica.

A escravidão não se apaga da história de um país; a famosa miscigenação não é senão fruto do estupro,  e não de uma sociabilidade amável, como querem nos fazer crer. O “homem cordial” brasileiro é a lenda encobrindo  um passado de exploração e violência, sobretudo sexual quanto às mulheres.

Corpos marcados, assujeitados, corrompidos em sua integridade, as escravas soluçam seus gritos, escondem suas feridas, retém a dor e a desesperança para não sacrificar suas vidas, face a um destino funesto.

Não perdi a capacidade de me indignar. Sofro esta história como espectadora de um silencio devastador, que esconde a brutalidade sexual no sistema escravocrata.

Quero romper o vazio deixado pelos historiadores para falar desta paroxística violência masculina, sobre mulheres e meninas obrigadas a se curvar, a se despir, se ajoelhar, a aceitar chorando a penetração infame, o sexo imposto em todas as fantasias masculinas. De fato, nem é apenas o prazer que se busca no estupro, é sobretudo o derramar da violência, da dominação, que motiva estes amplexos mórbidos, braços que envolvem sem carícia, apenas sordidez.

Fala-se sim, da escravidão, da abolição, porém a chaga maior fica encoberta: a criação de uma população mestiça fruto do estupro. A cultura da violência sexual formou-se assim, gerando nos nossos dias os estupros contados por minuto.

Já escrevi sobre isto alhures, meu texto foi criticado por ser subjetivo, por apontar as brechas deixadas pelos discursos. Por falar das escravas e de uma prole contaminada pela humilhação e a violência.

Pouco importam as admoestações.

 O sangue derramado pelas escravas , seu sexo estilhaçado pela selvageria masculina, não tem remissão nem perdão. Sobretudo porque nos tempos atuais as mulheres negras ainda são discriminadas e empurradas para os níveis inferiores do social.

Nada pode justificar esta violência desmedida ; o ódio e desprezo pela negritude de fato é o reverso da culpa gerada por 350 anos de escravidão. Será mesmo? Ou apenas o desejo de menosprezar outrem para se agarrar a uma saudosa estrutura de poder ?

Os homens escravos sofreram a desdita do grilhão e da chibata. As escravas, elas, além disto,  tiveram seus corpos invadidos, dilacerados , revolvidos, trocados, emprestados para a prática de uma sexualidade infamante.

A escravidão moderna assola o mundo, sobretudo Ásia e a África, com milhões de pessoas tratadas como propriedade alheia: mão de obra gratuita, trabalho forçado, tratamento desumano, e sobretudo, mulheres e meninas submetidas  a uma degradação inominável, da prostituição de crianças aos casamentos forçados, compra ou sequestro. [3]A índia, com 11 milhões de escravos/as e a China com quase 6 milhões, detém o recorde do número de escravos no mundo.

 

A prostituta não, mulher prostituída

Finda a escravidão, criou-se um modelo de violência sexual agora disfarçado pelo pagamento dos “serviços” prestados, pela lenda de que as mulheres se prostituem por escolha. Ao estupro organizado, foi dada uma nova denominação: profissão, trabalho.

O que tem em comum com a escrava? Corpos invadidos, liberdade tolhida, um destino traçado sob a égide do pênis. Servi-lo, reverenciá-lo, instigá-lo, recebê-lo seja qual for a aparência, a pestilência, reprimir o asco, o nojo do contato, do roçar dos corpos, da penetração; o rapto, o tráfico, a domesticação forçada pelos golpes e pelo medo, as fortunas erigidas pelo abuso de corpos alquebrados, insaciável desejo de poder , de dominação,  de utilizar as mulheres como moedas, como descargas de sua podridão. Meninas criadas em prostíbulos cujo destino está definido, crianças traficadas para o deleite de pedófilos, a lucratividade é fabulosa nesta dança macabra entre traficante, cafetão, cliente. A “festa” nos prostíbulos é a aniquilação do feminino, na avassaladora dança de sorrisos congelados, da arrogância da escolha – esta ou aquela- semelhante às feiras escravocratas. Predadores.

O “cliente” é o principal responsável pela prostituição, o eixo em torno do qual gira o tráfico, pois representa a demanda em um mercado que atende suas exigências pontuais; hoje a procura de meninas dá o tom ao comércio dos corpos, quanto mais jovem melhor. Prostituição legalizada, não há punição para os desmandos do  “cliente”, as mulheres devem ser responsabilizadas por sua exploração. É um mundo invertido, sempre a vítima como culpada.

Isto acontecia na escravidão, os senhores eram isentos de qualquer crítica quanto a seus abusos. E na prostituição, fantasiada de escolha, as mulheres assombram nas vitrines de Amsterdã, os bordéis da Alemanha, nas praças e desvãos de São Paulo, distribuídas em todas as regiões, nas ruas e becos, nos estacionamentos de caminhoneiros, no tráfico e aliciamento que as disseminam pelo mundo afora.

Cadeias, grilhões, cerceamento, domínio de traficante, de cafetão, de milícias, de máfias, as mulheres e meninas vivem o sofrimento de escravas nas mãos de algozes disfarçados sob o manto de “cliente”, em uma sociedade que transformou em sistema  a venda dos corpos das mulheres.

 Aos clientes pouco importa a origem, a trajetória, o percurso de uma mulher que foi prostituída. Não há remorso em “usá-las” pois é uma profissão, classificada no Brasil pelo Ministério do Trabalho[4] ; estão ali porque querem, não são obrigadas, são pagas, justificam eles. Como se houvesse justificativa. Predadores.

O cenário da escravidão muda um pouco. O estupro, o abuso sexual de crianças , pelos clientes ou por familiares substitui o sexo dos corpos disponíveis das escravas. A prostituição passa a ser parte do novo sistema, justificada ainda pelo “instinto” ,“necessidade” dos homens protegendo assim as mulheres núbeis. Eles não podem se conter, é preciso oferecer-lhes corpos a seu dispor. Predadores.

Pois não existem prostitutas, existem apenas mulheres prostituídas.

A prostituição é gerada na e pela cultura do estupro, pelo viés patriarcal de apropriação dos corpos femininos, expresso pela opressão, pelo medo, pela coerção, por todos os meios que curvem as mulheres às injunções genitais masculinas. O poder é isto: transformar seres humanos em bens, em propriedade, em desfrute, um alento para a masculinidade defeituosa, desprezível.

O estupro coletivo mostra bem a conivência, a irmandade dos homens quando se trata de possuir, humilhar, destruir, dilacerar, despedaçar o sexo das mulheres. É o exercício do ódio gerado pela inferioridade moral, pela necessidade abjeta de assujeitar para melhor erigir e assegurar um poder sem limites sobre outrem. Predadores.

As mulheres prostituídas são coisas, mercadorias, propriedade, fonte de riqueza. Pois é sobre a vilania dos homens, estes maridos, pais, irmãos, tios, avôs, namorados, que as mulheres são submetidas a esta condição miserável, homens que se deleitam em comprar mulheres, como o faziam os senhores de escravos. Homens irmanados na condescendência entre “clientes”, sementes de estupradores.

 Homens comuns, empresários, operários, aquele transeunte, meu amigo da faculdade, apoiados pelo beneplácito social para melhor comprar e abusar dos corpos de meninas e mulheres. Predadores.

Dizer que as mulheres prostituídas o são por vontade própria me provoca náuseas. É todo o sistema patriarcal que, mesmo em épocas de feminismo e reivindicação de direitos das mulheres, transforma a abjeção em trabalho. Não ouso imaginar a trajetória das mulheres e meninas que se encontram em estado de prostituição, os abusos, as violências, as ameaças, meninas e mulheres desprotegidas no lamaçal do patriarcado.

Defender a ideia de uma prostituição livre e escolhida é uma traição à todas as vítimas da dominação patriarcal, simbolizada pelo pênis e suas exigências. Que liberdade é esta que transforma pessoas em coisas, em objetos, em mercadorias, em sexo, em orifícios , destituídas de rosto, corpos disponíveis a qualquer um?

A revolta se esvai, a reivindicação de “direitos” na prostituição representa a plena aceitação do sistema  cuja marca é a abjeção. O direito maior da mulher prostituída é não ser prostituta, é sair de uma vida apodrecida pelo patriarcado.

Da literatura aos filmes e séries, a prostituição é normalizada, centro de euforia e prazer, de quebra de normas e liberdade de ações sórdidas. Prazer, liberdade, de quem?

Como se deixam enganar as feministas?

A prostituição é um câncer que devasta os corpos das mulheres na realidade e no imaginário social: a existência da mulher prostituída leva à concepção que todas as mulheres são desfrutáveis, passíveis de possessão. O medo habita as ruas, as mulheres e meninas são alvos permitidos pelas conveniências patriarcais.

Enquanto houver prostituição o feminismo fracassou. O patriarcado continua sua trilha de assédios, abusos, controle, ameaças, destruição de vidas.

A esposa

Não me sai da memória  a menina de oito anos que morreu de hemorragia, o útero rasgado, após sua noite de núpcias, no Iêmen, vendida por seu pai para um saudita de 40 anos.[5] Oito aninhos, uma criança estuprada até a morte. Estes pedocriminais restam impunes. Quantos milhões nas mãos degeneradas dos filhos de alá?

Moeda de troca, as meninas são utilizadas para pagar dívidas, para amealhar riqueza nas mãos dos pais, aqueles que deveriam delas cuidar, zelar.

O casamento, num enorme número de países, notadamente os muçulmanos, Indianos, chineses é um arranjo entre famílias, entre homens, que decidem o destino da prole feminina.

Na India, na maioria dos países africanos e muçulmanos, a mulher que não se casa e não se deixa mutilar sexualmente,[6] é uma pária da sociedade. Infibulação, excisão, práticas selvagens que raspam o sexo das meninas, deixando ferida aberta ou costurada; as sequelas são terríveis e mais uma vez se revela a sanha masculina de subjugar os corpos femininos, de toda maneira possível. Não há justificativa, apenas uma “tradição” patriarcal ancorada no vazio da opressão social.

 Casada, fica à mercê do marido e sua família. [7] Elas não podem opinar, são entregues a quem possa pagar. Às vezes, estas “esposas” são pasto para todos os homens da família.

No Senegal, o novo presidente (2024) se mostra em público de mãos dadas com suas duas “esposas”,[8] para reafirmar a tradição “religiosa”- graças a alá- da poligamia; o “direito” iníquo dos homens de se apropriar de corpos mais jovens de satisfazer  seus instintos. Estes tipos de arranjo não substituem a existência de mulheres prostituídas, neste país e tantos outros na África... Como sempre, deus ou alá é invocado para liberar os impulsos dos homens.

res que as entregavam às mãos de desconhecidos. Com a benção da igreja.

Aliás, os padres sempre aconselharam as mulheres à resignação, pois os maridos eram senhores instaurados por deus. A religião favorece os homens, seja ela qual for. “ Respeitar e obedecer”  ainda fazia parte dos votos matrimoniais para as mulheres, até há pouco tempo. Os clérigos não cessaram de denigrir o feminino, em seus sermões e escritos, como o  Maleus Maleficarum.[9]de erigir fogueiras, de instigar a caça às “feiticeiras”.

Entre os judeus ortodoxos, o casamento é arranjado e as mulheres casadas têm que usar perucas para não desprestigiar os maridos. Os cabelos das mulheres parecem ser um poderoso catalizador da sexualidade masculina.

No Brasil, até os anos 1960, as mulheres precisavam do consentimento do marido para tudo, se locomover, viajar, tirar passaporte, trabalhar. Eventuais heranças eram automaticamente transmitidas aos maridos.

O machismo impera ainda hoje na justiça, na legislação, na política, no mercado de trabalho, onde as mulheres ganham menos que os homens para a mesma função. Recentemente um desembargador no Brasil ironizou denúncia de assédio, afirmando que a vítima era “sonsa” e que existe hoje uma “caça aos homens”.[10] Este é o entendimento masculino quando se busca justiça, que é, porém, patriarcal.

Casadas ou em uniões eventuais ou estáveis, hoje ainda a violência habita os lares, ou seja, a violência doméstica. Os homens não controlam seu desejo de poder, de dominação que se derrama em golpes, surras, mutilações. Ao terminar um relacionamento, ou pedir divórcio, uma mulher arrisca sua integridade sua vida, pois o feminicídio poreja das notícias diárias nos jornais.

O casamento  faz dupla com a prostituição no sistema patriarcal. Namorados, companheiros, maridos, seu conluio cria a ampla rede de violência; sexo forçado, o feminismo levou décadas para conseguir estabelecer o repúdio ao estupro marital[11], o débito, o dever que teriam as mulheres de prover sexo a seus maridos., pregado por uma igreja patriarcal.

No casamento a mulher é mão de obra grátis, cuidadora de filhos, doentes e idosos na família. Se trabalha fora, é uma dupla ou tripla jornada, pois a um emprego formal se ajuntam os trabalhos domésticos: fazer comida, lavar roupa, limpar, organizar[12].

Todo mundo conhece esta situação, nada se faz para modificá-la. Ou seja, a divisão sexual do trabalho permanece, às mulheres, a sobrecarga, aos homens o direito de ser assistido e servido em casa. Senão, o látego canta. Não é uma questão de classe, de ignorância, de pobreza: a violência nos relacionamentos se dá em todos os níveis do social, do ministro ao operário.

Grande número de mulheres são abandonadas pelos maridos, e devem assegurar o bem-estar dos filhos, de um jeito ou de outro. Às vezes, 4 ou 5  ou mais, de um enorme contingente de mulheres sem qualificações para empregos bem remunerados, beirando a miséria e a fome.

Isto é de conhecimento geral,  a desigualdade é evidente, leis são criadas e tudo continua no mesmo refrão patriarcal: se um desembargador exprime seu machismo, algo inconcebível por um membro da magistratura, o que impediria o homem comum de exercer seus “direitos” sobre as mulheres? Assediar, maltratar, matar, pobres homens destituídos de seu poder pelo feminismo e pelas reivindicações das mulheres, eles se vingam.

E continua a toada “mulher não tem querer”, apregoada pelos carniceiros e estupradores do cangaço,[13] heróis para os machos da região nordestina.

Os casamentos arranjados percorrem o mundo como uma praga inerente ao patriarcado, ele mesmo o pior dos vírus.

Entretanto, o mito do véu branco, da festa, do “dia mais importante” de suas vidas povoam os sonhos de milhares de mulheres, que pensam haver encontrado seu destino ligado aos homens e seu baixo ventre. Laços impostos ou desejados, juras de amor e lealdade nada valem se houver desafio à autoridade, ao desejo, à submissão.

O casamento permanece um pilar do patriarcado.

A invisível/ velada/ escondida

Nos países muçulmanos, as mulheres são apenas sombras. Pesados mantos que as escondem, tortura insuportável no calor desértico de numerosos países. Azuis ou negros, os vultos escorregam pelos muros, evitam as aglomerações, temem por sua integridade, suas vidas, pois qualquer macho pode agredi-las, corrigi-las, admoestá-las.

As denominações são várias, burca, hijab, nikab,  tchador, o importante é esconde o corpo, o rosto, o cabelo sobretudo, segundo a região.

Em 2022 a “polícia da moral” do Irã matou a pancadas uma jovem de 22 anos, Mahsa Amini, que não estava usando “corretamente” o véu exigido.[14] Os protestos gerados deram oportunidade para prisões e maus tratos imagináveis e um ano após, a mesma polícia realiza milhares de prisões, com um saldo de 500 mortos, em manifestações diversas.[15]

Na ONU, depois desta morte, o Irã foi expulso da Comissão sobre o Estatuto da Mulher, sob protestos veementes de seu representante, que pretendia, com certeza, fazer valer as limitações impostas às mulheres em seu país. [16] Foram 29 votos a favor desta expulsão, mas 8 votaram contra e 16 se abstiveram. Ou seja, para estes últimos as mulheres são irrelevantes.

As mulheres são o alvo preferencial das políticas islâmicas, com a aplicação da Sharia[17], que regula a vida pelas normas religiosas em todos os setores, visando sobretudo o feminino. Nos países muçulmanos a Sharia  é aplicada com maior ou menor severidade, tendo como ápice de repressão às mulheres o regime Talibã no Afeganistão. Apedrejamentos, casamentos forçados, repúdio, prisões arbitrárias para oportunizar estupros coletivos, as mulheres sob o islã não são nada. Faces ocultas, propriedades disponíveis para uso e troca, invisíveis fantasmas no social e político.

As fotos ou vídeos que mostram as mulheres cobertas sobretudo de preto são uma ofensa aos direitos humanos, uma afronta a todas as mulheres no mundo, em pleno século XXI. Pois elas não fazem parte da sociedade, da política, do sistema jurídico, são apenas vasos de esperma e mãos para trabalhar de graça, ventres para produzir outros machos, que por sua vez irão dominá-las.

As mães são inferiores aos filhos, a eles devem obedecer, pedir permissões, chorar em silencio uma vida de arbítrio, sem esperança, sem objetivo. Sob os véus e os panos úmidos de suor e lágrimas, as mulheres são estrangeiras a elas mesmas, seus corpos prisioneiros da rede patriarcal que as torna seres sem vida própria; nos palácios ou nos sórdidos tugúrios, mulheres reais, como você e eu, vivem enclausuradas, reduzidos seus horizontes à 4 paredes, a obedecer para evitar as surras e maus tratos.

Para que educar, alfabetizar essas mulheres, que afinal só servem para o sexo e a procriação? Este tipo de raciocínio já percorreu os países do ocidente por vários séculos, mas hoje as mulheres são cientistas, educadoras, profissionais em todos os níveis, apesar dos preconceitos ainda vigentes. Enquanto isto, nos  países muçulmanos elas são o rebotalho do mundo, aquelas que só existem em função de uma sociedade patriarcal, por ela dominadas e assujeitadas.

As mulheres são peões jogados de um lado para outro, sempre em primeiro lugar na mira da legislação punitiva e restritiva de direitos da Sharia. Na Nigéria, o Boko Haram movimento que exige sua aplicação radical, raptou 276 estudantes em 2014, para serem as “esposas” de seus membros. O que aconteceu com elas? O imaginável e o inimaginável. Pobres crianças, agora mulheres, atreladas a um destino sombrio.

Sob o pretexto da religião, as mulheres são escravizadas. O Brasil se absteve de participar de um inquérito das Nações Unidas sobre a condição das mulheres no Irã, em 2024, que piora a cada dia.[18] A diplomacia brasileira não se interessa pela condição feita às mulheres no mundo. A penúria de mulheres no governo, no judiciário se acentua, apesar de promessas de campanha presidencial em 2022.

Invisíveis, sem identidade, sem  rosto,   escondidas ,vultos apenas, a visão limitada pelos panos gradeados, pelas máscaras, as mãos cobertas por luvas, as mulheres nos países muçulmanos se esgueiram pelas ruas, amedrontadas pelas barbas e pênis sempre prontos a domesticá-las, prendê-las ou simplesmente tomá-las a seu bel prazer. Para isto serve a polícia da moral.

O patriarcado no mundo muçulmano é o que existe de mais perverso e de pior em relação às mulheres, é a exacerbação do ódio, da ânsia de poder, da conivência entre os homens para criar alás, profetas, hadiths inventados, costumes invocados, tradições criadas hoje, como se fossem eternas.

Feminicído, infanticídio, pedofilia, legislações sobre os corpos e as vestes femininas, as ações são infinitas e pretextos para cercear a liberdade e a participação das mulheres na vida social, econômica e política. Impedidas de estudar, de trabalhar, de ter um salário, de dirigir um veículo, de sair sem a companhia de um macho, as nuances do mundo muçulmano deixam apenas brechas no abismo da repressão/dominação/ assujeitamento.

Já cansei de ouvir falar em “atitudes culturais” quando se trata da condição das mulheres. Continuo a me indignar, a protestar, a clamar que feminismo só terá cumprido seus objetivos se as mulheres forem libertadas, no mundo todo.

O mundo, porém, se cala. Os protestos das organizações internacionais são vazios de ações. A rebeldia das mulheres as leva diretamente para as garras das prisões, celas infectas, presas fáceis para os estupros dos guardiães da moral e dos costumes.

A moral patriarcal dos “valores da família” define o lugar das mulheres, submissas, procriadoras, obedientes. Se alguns estudiosos negam o aval do alcorão para o espancamento das esposas[19], o costume e o tolerância social masculina faz com que seja uma prática comum. De toda forma, os homens devem “aconselhar, corrigir” as mulheres, que não tem pênis, logo não conseguem pensar, pois a sede da razão está no baixo ventre dos homens.

A violência, o estupro, a prisão são suas garantias, seu suporte.

A mulher velada, invisível, escondida, coberta, muda, assegura um mundo composto apenas de homens que determinam e definem suas vidas.

No Ocidente, os islamistas procuram impor em sociedades laicas suas doutrinas e costumes tribais e medievos em relação às mulheres, aos animais, ao comércio. Na França, nos locais de aglomeração de muçulmanos as jovens são intimadas a não divulgar seus resultados escolares para não ferir a dignidade dos machos; a polícia da moral atua nas comunidades e nas escolas, para cercear toda possível liberdade das mulheres. [20]

No Canada, os muçulmanos tentaram criar um tribunal islâmico baseado na Sharia[21] para decidir sobre as questões “familiares”, ou seja, para colocar as em seus “devidos lugares” as mulheres.                                                                                                                                                                                                                                                      Este tipo de coerção certamente atua oficiosamente, ligado sobretudo à conduta das mulheres.

O mercado halal[22] se desenvolve com rapidez em todos os setores, desde o abate de animais até rede de restaurantes, refeições em voos internacionais. Estima-se que existem 5 000 açougues halal na França, lembrando que os matadouros islâmicos contornam a lei francesa que ordena atordoar os animais antes de abatê-los; eles querem ver o sofrimento, a dor, o medo nos olhos do animal, deve ser um prazer ver jorrar o sangue.

Todos os grandes supermercados na França expõem[23] produtos halal, e a diversificação é crescente: turismo, finança, moda, produtos cosméticos , farmacêuticos etc.

A tolerância do Ocidente tem incentivado a intrusão de práticas retrógadas no seio de democracias laicas, como o uso do véu nas escolas; a liberdade religiosa, porém, não inclui práticas que interfiram na laicidade , mas a celeuma tem sido acerba.

Não consigo entender esta atitude ocidental, que se dobra às exigências muçulmanas, permitindo, por exemplo, em Marseille, que a circulação de carros em determinados locais seja suspensa, para a prece dos muçulmanos em plena rua.

A arrogância dos islamistas, sua pretensão à verdade intimida os governos ocidentais. Na Suíça, [24]os estudantes foram liberados da prática tradicional de cumprimentar professores, no caso, professoras às quais se recusam a dar a mão, trazendo para as escolas a discriminação e o insulto em relação às mulheres.

Na Suécia, a tv estatal SVT levou ao ar um programa Halal TV, com três apresentadoras, devidamente veladas, que propagam as ideias extremistas da Sharia e tem criado muita polêmica. Aliás, de forma mais tradicional, as mesquitas e escolas corânicas são o eixo da expansão discriminatória em relação às mulheres, que devem ser servis, obedientes, assujeitadas, veladas, invisíveis, assim determina a lei corânica. Isto atrai conversões, pois que homem não deseja o poder discricionário sobre o feminino?

Assim como algumas prostitutas que se dizem livres de viver o aviltamento de vender seus corpos, assim também algumas muçulmanas reivindicam o “direito” de se cobrir, de se tornar invisíveis, de se apagar no seio de uma comunidade excludente.

Existe de tudo neste mundo.

Islamofóbica? Com toda certeza. Qualquer religião ou ideologia que pregue a inferioridade e a submissão das mulheres aos homens é desprezível, abjeta.

***

“A mulher”. Sob esta denominação é classificada mais da metade da humanidade, num mesmo caldeirão onde as especificidades de cada uma são apagadas e tornam-se todas iguais. Inferiores, irracionais, incompetentes, irresponsáveis, incapazes, fracas, dependentes.

 “Mulher não tem querer”... Obedeça, cale a boca, saia daqui, fique em casa, abra as pernas, curve-se, não responda, não encare, não leia, não estude, não ande na rua, não ria, não olhe, não se queixe, “grite mais baixo, os vizinhos vão ouvir”.[25] Submissão, assujeitamento, silencio, humildade, respeito, são as exigências quanto à “boa mulher”.

 O coletivo “A mulher” é a aberração  que cria a diferença, pois não há igualdade onde existe a diferença. Diferente de quem? Dos machos. Qual a diferença? O pênis. Neste parece estar contido todo o pensamento, a criatividade, o progresso, a ciência, a arte, a literatura. Nele está a essência de deus . Os homens pensam e agem em função de seu baixo ventre, seu orgulho e sua distinção.

Como poderia “a mulher” criar, inventar, escrever, se não possui esta essência divina?

O binômio é diferença / desigualdade. Cada ser humano é diferente do outro, mas a “diferença” essencial está no sexo. “A mulher” é a sede e a realidade da diferença, pois no amálgama e na exclusão geral cria-se um ser sem cor, sem vontade, sem aspirações, sem objetivos.

A diferença é criada e reproduzida na realidade, concebida em um imaginário discriminador, feito de religiões, de seitas, de tradições retorcidas, de costumes sem fundamento, de raízes soltas apenas apoiadas em lendas, contos, mitos, discursos e histórias excludentes e arbitrárias.

A memória social foi sequestrada pelos historiadores que não vão além da misoginia de Atenas e do Ocidente para narrar a história humana, esquecendo sistematicamente as mulheres da ação política, de lugares múltiplos no social, de atividades que compreendem a invenção, a arte, relegadas sempre à fertilidade e à procriação.

A história repete apenas a cantilena da predominância masculina contemporânea como se fosse “natural” ou “desde sempre”. Eva maldosa, criada da costela de adão é o protótipo da origem de sua inferioridade e caráter. Do mesmo modo, classificar a prostituição como “ a primeira profissão” na história é justificar mais uma vez a iniquidade deste tipo de exploração. E transformar os ritos sumerianos de um acasalamento sagrado, em prostituição, na mente pródiga em estereótipos.

Estou sempre suspirando por uma “história do possível” aquela que contempla a ação humana sem a perspectiva binária de superior / inferior, da divisão sexual e sexuada no social. A antropologia se interessa pelas ações dos homens, apenas algumas feministas se debruçam sobre o papel das mulheres nas sociedades analisadas.

A memória social, ungida por este tipo de distorção só faz repetir o mesmo do mesmo, na descontinuidade do tempo, que é apresentado como contínuo, evolutivo; aliás, a antropologia sagra a evolução do matriarcado para a eclosão do poderoso patriarcado, ápice civilizatório; Levi-Strauss reafirma a predominância masculina ao anunciar a “troca de mulheres” para o desenvolvimento social.

Os discursos das ciências sociais e humanas, à parte algumas feministas, não faz senão reforçar a disparidade entre o feminino e o masculino, dando a este último o lugar de honra nas pesquisas e análises. As descobertas arqueológicas igualmente relegam achados ligados ao feminino à “fertilidade”.

  A vontade de poder que habita o mundo masculino , a prática de um poder discriminatório e arbitrário, a exclusão e a ausência das mulheres na cena social e política, histórica, pela violência moral, legislativa, religiosa, é assim reforçada. A violência, aliás,  é o bastão que dobra os corpos femininos, em uma cabala masculina de manutenção do poder. 

O sonho maior desta massa humana, de bilhões de mulheres é a liberdade. Corpos livres, potencialidades abertas, caminhos a serem escolhidos e percorridos, destinos possíveis, liberdade, enfim. O fim das coerções, dos limites, das negações, o passo leve, a mente solta para a pesquisa, a ciência, a criatividade.

Quanto tempo ainda para que as sociedades se libertem da divisão binária e excludente, do sexo como divisor de águas, do tráfico de mulheres, dos clientes sem pudor e sem remorso, da prostituição, da escravidão dos casamentos forçados, da pedofilia,  da violência doméstica, dos véus e burcas, dos estupros individuais e coletivos, a grande festa masculina? Quanto tempo para eliminar o poder dos predadores?

Não ouso esperar ver tal transformação no curso de minha vida. Resta ao futuro e à força das mulheres conseguir quebrar tais normas e vivenciar a LIBERDADE.


 

[4] https://www.ocupacoes.com.br/cbo-mte/519805-profissional-do-sexo. Em versão anterior apontava-se a subserviência aos desejos do cliente, o material que deveriam usar, a escuta, a gentileza a serem oferecidas ao “cliente” , este dejeto humano, incapaz de se dar conta da degradação que promove. O ministério alerta para os perigos da “profissão”, mas de fato, as mulheres prostituídas não têm proteção alguma, à mercê de todos, da polícia ao traficante, passando pelo cafetão.

[6] A mutilação sexual atinge hoje cerca de 200 milhões de mulheres no mundo quase a população do Brasil, 600 mil apenas na UE. A infibulação consiste na raspagem do sexo, eliminando os grandes e pequenos lábios, restando apenas a vagina, para ser penetrada e a uretra. A excisão retira o clitóris e todas estas operações são feitas com facas, sem nenhuma anestesia, sem nenhum cuidado posterior.

https://www.ocupacoes.com.br/cbo-mte/519805-profissional-do-sexo

[11] Atualmente, o estupro marital está qualificado como crime na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)

[13] Negreiros, Adrian. 2018. Maria Bonita: sexo e violência no cangaço. Edição Kindle