Estudos feministas, desafio teórico e institucional

 

 

            Estudos feministas na academia são um desafio: em primeiro lugar, pessoal, já que se torna necessário afrontar o descrédito e a condescendência dos que postulam o caráter estritamente neutro ou impessoal da ciência. Percebe-se que tal opção é política e como tal, seu caráter  é sedicioso. Questionado a própria concepção de ciência, os estudos feministas revolvem os alicerces axiomáticos que fundam as premissas dos enunciados científicos. Pois, de fato, nada é verdadeiro de modo absoluto, apenas o desejo de verdade embasa as evidencias de uma ciência encastelada em seus pressupostos. A “ciência” para os feminismos, tem como característica  o questionamento constante de seus próprios fundamentos. A teoria, neste sentido, apresenta-se como um canteiro de obras, nunca acabada, sempre em reformulação arquitetônica. Para Linda Hutcheon, a teoria é uma poética, cujos sentidos estão sempre em aberto.

            Noções tais como “objetividade”, “ progresso”, “evolução”, “continuidade” tem sido questionadas, assim como as aproximação entre realidade e conhecimento do real, trabalhando-se níveis interligados de imaginário, simbolismo, representações sociais, lugares de fala e de autoridade, discursos sociais e seus sentidos. A realidade, de fato, é o que se representa como tal, numa rede de significações incontornavelmente histórica, ou seja, datada, própria às suas condições de produção.

A metáfora do real, livro aberto a ser decifrado, se transforma na percepção de que a realidade é uma  construção imaginária, política e ideológica, em que as relações e formações sociais instituem-se de acordo com seu regime de verdade, com os pressupostos, valores e fundamentos de um certo tipo de conhecimento. Ou seja, a questão do saber se desloca de “o que se conhece?” para “como se constrói o conhecimento”?

A questão política, por outro lado, é: a quem serve, que interesses são atendidos sob a pretensa objetividade da produção do saber? Pretende-se que “o homem” englobe a humanidade, mas as práticas discursivas mostram que nesta denominação torna invisível a produção e a própria existência das mulheres na história e no social. Pois assim temos, desde a pré- história, o “homem” fazendo tudo, desde os desenhos rupestres, até as descobertas consideradas marcantes, como a escrita, a roda, o fogo,  a agricultura. Quem pode afirmar que foram os homens que realizaram todas estas coisas?Quem pode afirmar que sempre existiu esta divisão de trabalho e de importância no social? Que falácia é esta, que, sob a denominação de “ciência”, discorre sobre 40 ou 50 mil anos de história do humano, em termos universais e “naturais”, fundada em valores arbitrários e datados? A quem serve o apagamento da história oficial de formações sociais onde as divisões de importância e trabalho não estavam ligadas nem à sexualidade nem ao corpo? As respostas a estas questões são claras, mas é preciso colocá-las para destabilizar a repetição do mesmo. Na repetição incessante fundam-se os valores “eternos”, as “essências”, a “natureza” humana, a “diferença de sexos”.

            De atividade neutra e desinteressada, a ciência descobre-se hoje  politicamente engajada, cujos parâmetros e resultados dependem das representações de e sobre o mundo e o real, de suas  condições de produção e representação. Ou seja, as pretensões de cientificidade não ignoram mais hoje as dobras interpretativas que resultam do próprio quadro representacional, do regime de verdade em que se insere a problemática da pesquisa e o da pesquisadora / o.  

Neste sentido as teorias feministas são revolucionárias, pois denunciam e questionam os últimos redutos das “certezas científicas”, os papéis, as funções, os desígnios, os modelos, os comportamentos, as normas e regras que ordenam o sexo social. Mas , se a academia incorporou durante décadas as perspectivas marxistas de transformação do social, os feminismos têm sido recusados sob vários pretextos: radicalismo, subjetivismo, engajamento. Ou falta de engajamento. Relegada ao domínio do doméstico, do natural e da materialidade, a experiência social das mulheres se tornou, no discurso, unívoca, instaurando a representação DA MULHER. As teorias feministas não existem para serem elaboradas e não utilizadas. Desta forma, o uso do singular para denominar as mulheres, sobretudo nos discursos feministas, é inaceitável. Da mesma forma, recusar a palavra “feminismo” e substituí-la por “gênero” é esquecer que foram as feministas que lutaram pelos estudos de gênero

“A mulher” não existe e na performatividade dos discursos, ao enunciarmos este singular, estamos retomando a representação e a imagem do feminino essencializado, unívoco, ancorado em seu corpo e seu útero, razão maior de sua existência. Se os feminismos apontam para a multiplicidade do ser mulher, da instituição do feminino em formações históricas e específicas, é intolerável esta repetição do refrão sobre “a mulher”, “condição da mulher”, “espaço da mulher”. Afinal, de quem se fala? Que mulher é esta, senão o ideal, o verdadeiro, o modelo, a expressão da natureza que a constrói para ser mãe, esposa, sexo, corpo? O estereótipo contra a qual se opõe as epistemologias feministas mais diversas, pois reduz as mulheres a um corpo e o feminino a uma função? Como diz Margareth Rago, os feminismos vieram para libertar as mulheres “da mulher”.

Todas conhecem as acusações de lesbianismo – tara suprema em uma sociedade patriarcal - e os insultos contra as feministas: mal-amadas, feias, rejeitadas pelos cânones sociais. O fato é que, sob estes pretextos, a produção de conhecimento feminista tem sido afastada das bibliografias e ementas, justamente por seu traço desestabilizador da ordem do discurso universalizante. Ao quebrar a ordem do discurso sobre a natureza dos sexos, sobre a diferença como fundamento do sistema binário social, os feminismos continuam a lutar por sua legitimidade, numa perspectiva de inserção acadêmica. Talvez até isto seja uma garantia de constante renovação, pois mantém suas características subversivas.

Neste sentido, se as teorias feministas nasceram e se firmaram em estreita ligação com os movimentos sociais, atentas às questões do presente e por elas interpeladas, em  um proveitoso círculo de trocas, seus próprios objetivos de mudança e transformação das relações sociais levam-nas a uma constante atividade de meta-crítica, de renovação de seus próprios conceitos e pressupostos na intervenção no político-social.

            Identificamos, nesta perspectiva,  a categoria gênero, hoje presente em larga escala na academia, como uma categoria datada, cujo impacto nos anos 1970 é inegável, mas que atualmente, necessita uma perspectiva crítica ao ser utilizada. Por um lado, a utilização desta categoria como universal e pré-existente às formações sociais desarticula seu próprio eixo de análise, que é a desnaturalização das relações sociais.

 De fato, como bem pontuou Judith Butler, não existe gênero fora de práticas de gênero e isto significa que não é o corpo sexuado que determina as relações sociais de forma a-histórica e universal. Ao se utilizar “gênero” como um sistema já-dado está-se reproduzindo o binário naturalizado. É preciso lembrar que é a procriação o fator determinante da heterossexualidade compulsória e hegemônica. Quem pode afirmar que em todas as sociedades este é o valor principal? De valor, a procriação passaria a essência, lei incontornável. Ora, no humano, não há valores universais e afirmar o contrário seria negar sua historicidade e entrar no domínio das crenças.

Desta forma, o binômio sexo/ gênero não é utilizável senão quando se analisa os mecanismos de produção deste sistema, o processo de diferenciação dos sexos e a construção de corpos sexuados pontualmente, isto é, definidos no tempo e no espaço. Quem pode afirmar que sempre existiu esta divisão do humano, mulheres e homens, com as mesmas características e funções sociais, sem se cobrir de ridículo?Se o que nos resta do passado são indícios discursivos; se finalmente hoje, percebemos que todo discurso é interpretativo, engajado em suas  representações do mundo como se pode afirmar “verdades” definitivas a respeito do humano, construído e montado em multiplicidade?

É imprescindível notar que a história é a memória do social e suas afirmações constroem uma imagem do humano homogênea e universalizante. “O que a história não diz, não existiu”, é uma frase que emprego sempre. De modo que a enorme pluralidade das relações sociais, já completamente apagada na história tradicional, continua a ser homogeneizada nos discursos de gênero. O pressuposto feminista era mostrar como a cultura instituía papéis sexuados, mas a instalação no discurso acadêmico do “sistema sexo/ gênero”, de forma acrítica, não faz senão repetir O MESMO, desde a pré-história, quando temos em mente a imagem dO homem arrastando A mulher pelos cabelos.

Da mesma forma, o aforismo “ prostituição, a mais antiga profissão do mundo” é um insulto a todas as mulheres, supostamente à disposição  e à venda desde sempre num mundo masculino, transformados todos os séculos e todas as formações sociais numa grande massa homogênea. Além disto, é  uma construção discursiva falaciosa, pretensamente baseada na história. Senão, vejamos: o documento considerado mais antigo da história, a Epopéia de Gilgamesh da Suméria conta, em seu início, como o herói, caído, é ajudado por uma prostituta, o que fundaria no início dos tempos a afirmação precedente. Ora, não só a tradução é incorreta, pois a palavra – gadishtu- no idioma original significaria “sacerdotisa”, como aponta a historiadora Merlin Stone, como o sentido da palavra prostituta é traduzido a partir de representações do presente.Pois o que define uma prostituta?  Mais uma vez, a pergunta política é: a quem serve a ancoragem da prostituição na mais antiga história, marcando-a do selo do natural, essência do feminino? A quem serve a imagem de um feminino fossilizado, ligado a um destino biológico?

Não basta, portanto, inserir gênero nas teses e dissertações, é preciso afunilar para a própria desconstrução do gênero, isto é, mostrar o aparatus da construção dos corpos sexuados, estes “nós semióticos”, como sublinha Donna Haraway, destruindo a naturalização da evidencia que parece maior: a diferença dos sexos.

 Mas mulheres e homens não são diferentes? São, sim, construídos de forma diferente, pelas pedagogias sociais, entre as quais podemos apontar as ciências. Tecnologias de sexo, como quer Foucault, são acompanhadas de tecnologias de gênero, e ambos são construtos sociais. Sexo é instituído na medida em que se elege um detalhe anatômico para fundar a divisão binária do humano, de forma assimétrica e hierárquica. Gênero, assim, não se instala sobre uma superfície material pré- existente e pré- discursiva, o sexo, pois é a partir de práticas sociais que se instauram os gêneros.

Esta construção teórica pode ser detectada na produção histórica do feminino, os limites e funções impostas que lhes é imposto, em lugares e épocas diversas – por exemplo, papéis binários  foram aos poucos sendo construídos pela igreja dos séculos XII e XIII , impondo normas e exclusões às religiosas, baseados em representações do feminino, entre perversidade, sexualidade incontida e irracionalidade. As representações sobre as mulheres são datadas e podem ser desveladas, mas para isto é preciso a criatividade e a crítica feminista.

Tendo em vista a importância da história na repetição e ancoragem das representações sociais que interpretam o mundo, na memória social que institui valores em tradições, enquanto historiadora proponha o que denomino “uma história do possível”. Destruir as evidencias, buscar os sentidos que habitam as relações humanas, abandonando o pressuposto de uma divisão binária do mundo, baseada na sexualidade, esta é uma história do possível, uma história feminista. Pode ser também uma história de surpresas, de mundos a descobrir, de relações inusitadas, de valores baseados, talvez, em instancias que não se prendam ao anatômico para instaurar o social. Esta é minha história, o possível nas relações humanas: o pressuposto é que nada é “natural”: a comunicação e trocas sociais instauram modos de ser, de representar, de imaginar, de interpretar que são singulares, específicos a cada formação social; além disto, porque seriam sempre tingidas de poder, hierarquia, violência? Estas não são novas naturalizações?

Não basta inserir mulheres enquanto categoria ou seres reais na história: o que sabemos,  afinal. sobre a suméria, sobre çatal huyuk, sobre esparta, sobre o brasil, senão o que nos disseram a respeito, discursos tintos da misógina  do século XIX? 1000 anos de idade média são reduzidos ao mesmo, em algumas páginas, 1000 anos também dos povos orientais são classificados em bloco, como sociedades patriarcais, tal como sugere Kramer. Como se pode impor a mesma ordem do discurso a milhares de anos de história humana, a não ser por pressupostos valorativos, sem fundamento, que criam patamares e esferas baseados em sua simples afirmação?

A ciência, ela mesma, baseia sua autoridade na afirmação da cientificidade. Hoje vemos com clareza o quanto as verdades científicas, enunciadas com tanta pompa e circunstancia, escondem seus tentáculos de poder. Basta pensar nos discursos eugênicos, nas justificativas racista e sexistas, já expostas em tantos trabalhos feministas.

Quero enfatizar a importância da epistemologias feministas – no plural, pois as perspectivas são múltiplas – na tarefa monumental de desconstruir as imagens do feminino instaladas na memória e nas representações sociais. Pensar-se os pressupostos que orientam uma pesquisa feminista é crucial; é assim que se mantém uma postura crítica em relação à própria produção, para não terminarmos trabalhando, como diz tereza de lauretis, na “casa do mestre”, isto é, mantendo os mesmos parâmetros androcentricos que orientam as pesquisas.

Quantas vezes já ouvimos que feminismo não é ciência? Afinal, de que ciência estamos falando? Aquela, da objetividade, neutra, que esconde seus pressupostos, suas premissas, seus mecanismos de produção de conceitos e categorias, que nega a problematização e a interpretação do sujeito, brandindo verdades universais? Esta, efetivamente, não é a ciência que nos interessa. A ciência feminista é aquela  que utiliza  a“objetividade pesada”, como define Sandra Harding , aquela que mostra e indica seus pressupostos, que anuncia seu lugar de fala, que trabalha com possibilidades e não com certezas, perguntas e não respostas, problematizações e não descrições.  Esta também é minha história do possível, sensível às condições de produção de seu objeto e do sujeito que o revela e analisa.  

Nesta perspectiva, temos  as diferenças sexuais como processos de construção do humano, datado e alcançável nos vestígios discursivos que chegam até nós. Os discursos sobre a “natureza”, sobre a diferença dos sexos aparecem hoje somo estratégias políticas, táticas de poder, fundando na tradição e no biológico a divisão de trabalho, divisão de espaços, divisão de valores e presença no mundo.

Neste sentido, se voltarmos à pergunta: existem diferenças entre mulheres e homens na representação, ação e expressão no mundo? A resposta, evidentemente, continua a ser Sim!  Claro que isto não se deve a tendências “naturais” ou de traços biológico ou de uma anatomia específica, mas simplesmente por sermos transformados em mulheres e homens, desde o nascimento. Bem ou mal recebidas, segundo a cultura, cores e aprendizados diversos, emoções e sensibilidades delimitadas, os corpos humanos são instituídos pelas pedagogias sociais. Como diz Berenice Bento, todos somos fruto de cirurgias que modelam mentes e corpos em torno de representações, imagens, normas, definições. A diferença existe. Mas ela foi construída e repete-se sem cessar , num processo ininterrupto, pelas pedagogias sociais, mídia, ciência, religião, família e outras instituições normativas, para melhor dividir, dominar.

Existe uma escrita feminina?Sem dúvida, pois o feminino existe em uma diferença instituída. Pode-se escapar a estes assujeitamentos? Sem dúvida também, e a própria realidade em que existimos mostra exemplos de processos de subjetivação que não se curvam às injunções do social.

 De fato, o poder da normatividade social encontra seus limites nos processos de subjetivação, onde os assujeitamentos são mais ou menos densos. Os feminismos são deste processo bons exemplos, na medida em que as mulheres neles se posicionam de forma mais ou menos livre em relação às representações sociais da “verdadeira mulher”. Quer sejam injunções relativas às imagens de corpo, beleza e sedução, quer em papéis obrigatórios como a maternidade ou a heterossexualidade, os processos de subjetivação das  feministas traçam percursos diversos, tão múltiplos quanto as próprias mulheres, quanto a experiência constitutiva do feminino.

Com um objetivo, porém: transformar. Transformar os intrincados caminhos do poder, quer seja na própria existência, quer seja na academia, em cada desvão onde se instalem o preconceito, o sexismo, a diferença e sobretudo, a in-diferença. Neste sentido, as teorias são incontornáveis, pois conseguem explicar aquilo que rejeitam, explicitar os mecanismos, os processos de diferenciação sexual. Esta é uma das tarefas feministas na academia: esmigalhar os discursos de verdade, mostrando a inexistência de seus fundamentos, a areia fina que sustenta suas edificações. O é também abrir as mentes para entender a construção social e histórcia dos seres, a falácia da neutralidade, da objetividade, da divisão binária do humano que de natural nada tem. Problematizar, questionar as evidencias da ciência, esta é  tarefa das feministas na academia, transformar os campos disciplinares, sacudir os pressupostos rançosos, quebrar os vidros das estufas que fazem proliferar o preconceito e a normatividade.

Ser feminista, de fato, deveria ser sinônimo de ser livre, pensar livremente, agir com liberdade, existir sem grilhões. Este é, afinal, nosso objetivo.