O Grande Silencio: a violência da diferença sexual  

tania navarro swain

Congratulações às organizadoras do evento, pelo trabalho e pela coragem de colocar em seu título “feministas”. Feminista e não feminina, de mulheres que temem este nome. Não aceita a injustiça, a discriminação, a desigualdade pela simples razão de ser mulher? Você é feminista. Quer transformar as relações sociais, esvazia-las de violência de gênero? Você é feminista! Não aceita salários desiguais para as mulheres, dupla ou tripla jornada de trabalho? Você é feminista! De fato, mulheres que tem um mínimo de consciência, quer o digam ou não, são feministas.

Há pouco tempo vi um documentário cujo título tomei emprestado: o Grande Silencio, de Lise Jackson. Milhares de mulheres violentadas no Congo, em Rwanda,  mulheres penetradas por facões, galhos, fuzis, os órgãos arrebentados, destruídas em seus corpos e suas vidas, carregando filhos de estupradores, rejeitadas por suas famílias por terem sido “manchadas”.

A guerra, disse uma congolesa, é feita entre os homens,  contra as mulheres, de todas as idades, estupradas por soldados de todas as facções, inclusive pelas forças internacionais. . Entrevistados, os estupradores justificam o ato como “uma magia para vencer a guerra”, ou simplesmente afirmam que deus fez as mulheres inferiores e assim podem ser tomadas à vontade. É a necessidade, afirma outro, “natural”. Será que o natural inclui a tortura?

 Na guerra dos Bálcãs, as mulheres européias sofreram também todo tipo de violência, o estupro usado como arma de guerra por seus antigos vizinhos ou colegas. E o que dizer das coreanas -confort women- escravizadas sexualmente pelos japoneses, na segunda guerra? No Brasil, a cada 12 segundos há um estupro, segundo se estima. Na maior parte dos paises muçulmanos as mulheres são silenciadas,  vendidas, trocadas, prisioneiras da religião e dos homens. Quem se importa? Às discussões sobre direitos humanos há que se acrescentar “das mulheres”, para retirá-las da invisibilidade.

O  tráfico de mulheres é a terceira atividade ilegal no mundo, só ficando atrás do tráfico de armamento e drogas e movimenta cerca de US$ 32 bilhões anuais. Mais de um milhão de mulheres trabalham como escravas sexuais para redes internacionais deste  tráfico de segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). E cerca 15% dessas mulheres,  que são prostituídas através do mundo, são brasileiras, segundo denúncia apresentada no 1º Seminário Internacional sobre Tráficos de Seres Humanos, ocorrido em 2000, em Brasília. [1]

Todo ano, mais de 100 milhões de mulheres tem seus sexos mutilados, cortados, raspados pela excisão e infibulação, tradição , dizem os experts. Tradição, sim, de domínio, de exercício de poder sobre corpos instituídos em hierarquia e inferioridade. E o pai que aprisionou como escrava sexual sua filha, por 25 anos? E não foi um caso isolado, espoucando aqui e ali, em diferentes países.

    De início a mídia se apodera de tais casos, como sensação e depois....o Grande Silencio.

Sexo e sexualidade estão mesclados a todas estas atrocidades, vinculados à instituição social de corpos das mulheres,  que faz parte de um imaginário patriarcal. Neste, está naturalizada a apropriação  dos corpos femininos, utilitários instrumentos de prazer, de usufruto, de produção, de trabalho. As mulheres são apropriadas pelo simples fato de serem mulheres, humanos “diferentes”.

Não consigo esquecer a menina de 14 anos, encerrada em uma cela com 20 homens durante 27 dias e a polêmica que se instalou  foi apenas em torno de sua idade. Não se falou da pessoa,  ofertada como  pasto aos presos, a seu dispor, entregue à sua brutalidade e arbítrio, . O que leva um magistrado a dar esta ordem? Estaria punindo a menina, entregando-a ao estupro – punição exemplar- ou recompensando os presos, quem sabe estupradores, com carne fresca, um corpo de menina reduzido a orifícios? E mais uma vez,  este não é um  caso único, como afirmam os jornais. Uma mulher presa é um corpo a ser usado, como qualquer mulher que esteja em situação precária  ou de risco. E isto é “natural.

 Turismo sexual é notícia, mas prostituição é “natural”; imagem clássica de uma natureza que encobre a violência da apropriação social, material e imaginária,  dos corpos femininos. Na paz ou na guerra, a violência se traduz na apropriação e desfrute dos corpos das mulheres. Como diz o estuprador do documentário, “elas não queriam, então usamos a força”. Afinal, não foram feitas para isto?

É justamente isso: definidas por uma “diferença” essencial, estão lá para servir seus referentes, os modelos do humano, os homens.  Estou cansada deste silencio deste meio constrangimento que surge quando se fala claramente de violência de sexo, de sexo social, dos abusos contra meninas e mulheres, da defesa da honra, desta solidariedade masculina que vê com olhos condescendentes todas estes horrores. Com que freqüência é aplicada a Lei Maria da Penha? Abuso doméstico, casos sem importância, fatos “naturais”, afinal, “entre marido e mulher, não se mete a colher”!  Estou cansada da ignorância, da má fé, das crendices embutidas nos enunciados ditos científicos  da “diferença” que naturaliza todos os excessos, todas as explorações. Estou cansada que se diga que tudo vai bem, que os feminismos não são mais necessários, que as mulheres conseguiram tudo que queriam. Tudo que foi conseguido foi a custa de muita luta, de muita dor e sofrimento. E não se pode relaxar, os integrismos de toda espécie estão aí para solapar as conquistas feministas, para recolocar as mulheres em “seu lugar”: fêmeas, parideiras, domésticas.

Vamos problematizar. A “ diferença sexual”, naturalizada, assenta-se sobre um tripé, três instancias do social, que asseguram o exercício do poder falocentrico: a) a diferença material, onde se fixa a significação dada ao sexo e a sexualidade, onde  se consagra a valorização do sexo masculino, do pênis, o “verdadeiro sexo”, louvado pela psicanálise, significante geral dos sistemas patriarcais. A diferença material, é a que acolhe a violência, assegurando os lugares de poder para o masculino. A partir do biológico, instala-se, portanto um determinismo social, no qual papéis/ status / deveres/ trabalho são divididos de forma assimétrica e hierárquica.

Imbrica-se a esta dimensão material, o campo representacional, a segunda peça do tripé, aquela que cria e recita imagens dotadas de significações binárias: são os sentidos produzidos no social, o que interpretam e criam  realidade a partir de valores, verdades construídas em redes históricas de produção de conhecimento.

Uma representação repetida é performativa, isto é, cria aquilo que representa, cria também campos de poderes e de verdades em formações sociais históricas: se digo a um menino muçulmano “você é um homem”, subentende-se uma hierarquia e poderes a ela inerentes: ele terá ascendência sobre todas as “não-homens”, as “diferente”, que não possuem o sexo masculino: sua mãe, tias, irmãs, etc.  

Ao se dizer “seja homem”, de modo geral, está-se significando um conjunto de valores atrelados ao masculino, que estão ausentes no feminino, assim desvalorizado. Quantas vezes não ouvimos a frase, dita a meninos de tenra idade: “cuide de sua mãe”? Encontramo-nos, assim, desde o nascimento, desde antes do nascimento, em um sistema de significações, de representações, de uma linguagem que impregna de valores e determina comportamentos em divisões binárias, identitárias, classificatórias, exclusivas e excludentes. Este é o domínio do Pai, assim instaurado no social como o eixo da autoridade e do poder.

Mas uma representação também é histórica e para manter-se precisa ser recitada, repetida, ensinada, inculcada e neste sentido percebe-se o processo de diferenciação de sexos, incrustado na biologia para melhor justificar sua pretensa veracidade. Foucault aponta para os “regimes de verdade” no social, isto é, a circulação de enunciados, de valores, de imagens e representações com valor de verdade.

 Percebe-se assim que o processo de diferenciação de sexos  se instala  em formações sociais históricas e este processo é político, pois assegura e transmite poder, justifica e aprova o uso da força e da violência no controle, domesticação e utilização dos corpos, do trabalho, da produção realizada pelas mulheres.  Este é o domínio do Patriarcado, a terceira ponta do tripé, os três P, que instituem corpos, ordenam e classificam os seres segundo sua genitália.

A construção  da diferença sexual é, portanto, um processo político que produz diferença, desigualdade, que cria hierarquia e assimetria, que permite e estimula o uso da violência institucional e social, centradas na valorização e/ou desvalorização de um detalhe biológico - o sexo. 

Assegura igualmente uma divisão de tarefas pretensamente ligada ao biológico e naturalizada pela memória social, a história. Hoje quase ninguém, que estuda e reflete um pouco pensa ainda numa história evolutiva, cujo processo levaria do pior para o melhor; sabe-se que a história é uma narrativa, uma ficção elaborada a partir de alguns indícios e explicitada segundo as condições de imaginação e de conhecimento dos historiadores.

 É assim que, ao considerar a diferença sexual enquanto dado “natural”, a história não problematiza as representações e os valores que constituem o social e vem, nas formações sociais, aquilo que querem ver. Desta maneira, temos uma história androcentrica, que não cessa de repetir o mesmo, a mesma divisão biológica, os mesmos atributos, as mesmas hierarquias e assimetrias ao longo de um tempo linear.

Quem pode afirmar, por exemplo,  que os desenhos pré-históricos foram feitos por homens ou que a descoberta do fogo ou da roda também foram fruto da diligencia e criatividades masculinos? Quem pode afirmar que havia mesmo um feminino e um masculino em épocas das quais nada sabemos? Ou mesmo em épocas mais conhecidas, para as quais não se problematiza a construção da “diferença sexual”, do sexo social? Quem pode afirmar que o sexo e a sexualidade sempre foram os determinantes da estrutura do social? Os discursos das essências e da incontornável “diferença sexual”  são fruto de crenças caducas, de verdades esfarrapadas, destilados pelos donos da verdade, guardiões de poderes adquiridos.

As categorias “público / privado”, também são históricas, e isto quer dizer que não existiram desde sempre e para sempre, como deixa supor a “diferença sexual” naturalizada. São utilizadas  para reafirmar uma ordem androcentrica, sempre justificada pela “diferença”, por atributos  e características ditas “naturais”, evitando qualquer problematização.

Porque o sexo, enquanto divisor de águas? Por sua manifesta ligação com a reprodução e com o domínio dos corpos reprodutores – o que significa a criminalização do aborto senão o controle dos corpos das mulheres, de sua vontade, de sua liberdade?  Feministas como Adrienne Rich e Monique Wittig, já nos anos 70 identificavam este domínio como “heterossexualidade compulsória”, ou seja, a sexualidade reprodutiva estabelecida como sistema, como instrumento político de controle e dominação das mulheres, de seu útero, de seu sexo, de sua sexualidade e de sua força de trabalho.

Institui-se nos corpos definidos como femininos seu destino, marcas definitivas que limitam suas ações e representações enquanto sujeitos políticos. Falo de político com uma ampla abrangência, o político que engendra as relações sociais, que as fomenta e instaura. Os sentidos elaborados, em tempos e lugares específicos, tomam foros de verdade ao serem expressos na linguagem sob a forma de tradição, memória, história, do “sempre foi assim” ;  em sua própria repetição criam constantemente o solo sobre o qual se apóiam, expressão de uma realidade universal e/ou natural.

A ausência das mulheres como sujeitos políticos na produção do conhecimento e no social, não era sequer notada, até a eclosão dos feminismos contemporâneos. Esta é também uma violência simbólica que sofrem todas as mulheres, para além das violências cotidianas e de sua banalização,  que decepam a indignação e criam o Grande Silencio da “natureza”, no discurso do já-dado, dos destinos biológicos, da  identidade fixa. Singularizadas, as mulheres se tornam “a mulher”, todas iguais, orifícios e úteros disponíveis, braços e mentes ocupadas pelo cuidado de outrem.

Destruir as evidencia é um princípio metodológico proposto por Foucault.Aquilo que nos parece evidente, neste sentido, não é senão a cristalização de representações sociais, de imagens construídas em valores e hierarquias, em contornos que expressam poder, assujeitamento, lugares sociais, direitos, comportamentos, percepções.

         As formações sociais, em tempos e espaços diversos, se estruturam em torno de suas condições de produção e condições de imaginação, numa circularidade que imbrica e constitui simultaneamente imaginário e materialidade, estabelecendo sentidos plurais.Condições de imaginação significa o possível de ser pensado em uma formação social dada; assim, em nossa cultura, só tem sido pensado o humano em termos de diferença sexual e esta, assentada incontornavelmente em uma hierarquia.

Então, a existência de um corpo sexuado, que divide o humano em masculino e feminino está  em um  campo  de significações históricas e limitadas. Destas significações dependerá o lugar de fala, de autoridade, de presença, de atuação na sociedade em que nasce. Ou seja, nada é natural, nada é pré-existente às relações sociais, não há hierarquias “naturais”, não há gênero fora de relações matérias e simbólicas de gênero. Mas são apresentadas e representadas como tal, como essenciais e fundamentais ao relacionamento humano.

Mas afinal, o que é uma mulher? Perguntava, em 1949 , Simone de Beauvoir. É esta questão que abala a  evidencia maior de corpo sexuado pré-existente  à sua inserção no cultural, já que, como afirma esta autora, “não se nasce mulher, [alguém] se torna mulher.

Colocando em pauta o corpo sexuado como uma construção social, os feminismos contemporâneos, que adquirem visibilidade justamente a partir desta pergunta de De Beauvoir, desarticulam a certeza fundamental da ciência e da biologia, pois fica claro que não basta ter uma genitália específica para ser mulher ou  homem. É-se construído culturalmente de forma binária e hierárquica, e a diferença sexual, fundamento de todas as desigualdades é um processo contínuo de diferenciação, de um corte político do humano, criando imagens e representações, criando práticas e comportamentos naturalizados pelos discursos sociais, da religião à ciência.

Os feminismo criticam esta repetição constante de idéia de diferença sexual, esta  necessidade de estabelecer como “natural” a hierarquia, a assimetria, a coerência entre sexo, desejo e sexualidade para que a inteligibilidade cultural do humano seja admitida e adquira foros de “natureza humana”. .Ou seja, corpo, gênero e prática sexual devem ser coerentes em sua visibilidade  para serem admissíveis na ordem do discurso social. E isto vale para a diversidade do humano, que também é marcada pela “diferença sexual” primária, a do sexo em feminino e masculino.

. A diferença é política, pois o corpo é marcado pelo sexo e o corpo das mulheres se torna assim, assim espaço político de domínio masculino..O “natural”  aqui, do corpo biológico, dotado de certas particularidades, é uma instituição política, na medida em que define um comportamento “normal”, fixa uma identidade a partir de valores criados e oriundos do social. A  genitália, assim, torna-se causa de uma sexualidade paradigmática, da heterossexualidade reprodutiva, cujo ônus recai, principalmente, sobre as mulheres.

Na atualidade, a repetição dos discursos sobre a « diferença », baseados na ciência e no senso comum tentam velar o fato que a enunciação da diferença é também sua construção. Para ser diferente, é preciso um referente. Quem criou o referente, a quem serve a idéia de « diferença sexual » ? Colette Guillaumin pergunta : Como diferente ? Diferentes de que ? Não se pode ser diferente como se é loura ou morena, é-se diferente de algo, de alguma coisa. Assim, diz ela, se as mulheres são diferentes dos homens, estes não diferem, são, apenas, homens. Os referentes.

De fato, não há diferença fora de práticas sociais, fora de regimes de verdade específicos que instituem leis, coerções, exclusões, normas, regras. A diferença sexual é assim a reprodução do mesmo, do referente, das identidades fixas, do biológico, do masculino,  cujo sexo é o centro ordenador das relações sociais. Desta forma, a diferença sexual é constitutiva do sistema patriarcal, daquele que, ao gerar a violência de sexo, gera ao mesmo tempo o Grande Silencio sobre a apropriação das mulheres, sob a égide da “natureza”. O Paradoxo, como aponta Irigaray, é que na divisão binária da “diferença sexual” não há dois sexo, apenas um: o masculino.

Ora, esta diferença estabelecida nas relações sociais como « natureza, cria a imagem ideal do feminino, a « verdadeira mulher », modelo unívoco que reúne todas as mulheres em uma só representação. Esta imagem se compõe de sexo – procriador – e de sexualidade – dirigida e definida pela heterossexualidade e que exige vários atributos, juventude, beleza, sedução, entre outros.É assim que os discursos sobre a “natureza”, sobre a “diferença dos sexos” encobrem as relações sociais e históricas que as constroem, instalando o feminino na pesada materialidade de um corpo administrado por suas funções genitais e hormonais.   

Uma das tarefas mais árduas dos feminismos é libertar as mulheres desta imagem de mulher, única, dócil, casadoira, procriadora, liberta-las da “verdadeira mulher”, da “diferença dos sexos”, da fragilidade presumida, da passividade, do assujeitamento a uma representação cujo fundamento é apenas sua repetição incessante. Quantas feministas não ouço falarem “da mulher”? A linguagem é performativa e ao nomeá-la, na univocidade de sentidos, no singular, está-se restaurando a representação do “todas iguais”, do  “feita para isto”, seja procriação, seja sexualidade subordinada, seja corpos apropriáveis.

Mas as mulheres, no plural, sofrem os trabalhos, os dias e ...a heterossexualidade compulsória: seu destino é marcado pela necessidade de seduzir,  de se contemplar nos espelhos dos quartos e corredores, nos olhos e no desejo dos homens. As tinturas, as cirurgias plásticas, a maquilagem incontornável tentam afastar o fantasma da ausência da concupiscência de  outrem, de um abismo identitário que se aproxima com a menopausa. O fantasma da velhice ronda e baseada na firmeza de suas carnes, a identidade das mulheres se esvazia de sentido. Que assujeitamento é este, que auto- estima pode existir para uma mulher cuja importância se mede pelo olhar de outrem?

Em suas condições de produção e imaginação, dominadas pela imagem da “!verdadeira mulher”, definida enquanto corpo e natureza, sexo e procriação, sofrem o poder da heterossexualidade normativa, reprodutiva e fora desta instituição, encontram-se destituídas de significação, valor, importância, amor próprio. Se seu destino biológico não pode ser cumprido, suas vidas perdem o objetivo, o norte, a razão. Esta é a força que alimenta as clínicas de fertilização, nova forma capitalista de apropriação de corpos femininos.

Assim, o assujeitamento à imagem “da mulher” se dá de duas maneiras: externa, pela educação, repressão, convencimento feito pelo social e interna, pelo movimento de dobrar-se ou recusar as injunções do social quanto a comportamento, imagem, inserção no político, na cidadania, na liberdade de ação.

Porém, educadas, coagidas, persuadidas, assujeitadas a seu papel de “mulher”, retidas em seus impulsos e criatividade com grosseria, rigor, sarcasmos, ironia, violência; dominadas, limitadas a certos campos, as mulheres tem tido muitas dificuldades em se apropriar e cultivar espaços de liberdade.  Entre domesticidade e fraldas, entre trabalho assalariado e suas tarefas “femininas”, o tempo passa depressa e aproxima-se a linha divisória da idade, da menopausa, quando as mulheres são afastadas da bolsa de valores do sexo procriador e da sexualidade.

Quem escapa? As feministas, claro, que, cada uma em suas próprias condições de ação e reflexão criam novas representações do feminino e se libertam da “verdadeira mulher”. De fato, o “nós mulheres” das feministas marca apenas um lugar simbólico, já que “ mulher” é  uma categoria criada dentro de relações patriarcais de dominação. Pois, a grande desordem no social seria que as mulheres não se enquadrassem no modelo referente / diferente , mas que fossem perfeitamente in-diferentes às representações imagéticas e materiais da heterossexualidade compulsória. Isto seria o fim do sistema patriarcal.

E a sexualidade? Justamente, vivemos hoje em um regime de hipersexualização, em que a medida da realização se dá em função de uma intensa prática sexual.

Tornar-se mulher dependia de um ato heterossexual, de penetração, de inauguração de uma nova vida, a vida “com homem”, única possível nestas condições imaginárias. Mãe e esposa, carreira feminina por excelência,  o caminho é a  sedução, o olhar dúbio, os cílios que batem, o corpo que se contorce e retorce, em gestos “sensuais” que revelam apenas o vazio de corpos modelados para o serviço e o desejo de outrem. Carreira limitada pelo tempo, pelo peso da idade e da ingestão de hormônios.

Para Foucault, esta ênfase na sexualidade se dá em função do que chama de “dispositivo”.Há uma ansiedade social em torno da sexualidade que não é outra coisa senão a ação deste dispositivo tão bem explicitado por Foucault:

> «  não se deve conceber ( a sexualidade) como uma espécie de dado da natureza que o poder tentaria dominar, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, aos poucos, desvelar. É o nome que podemos dar a um dispositivo histórico: não realidade subjacente sobre a qual se exerceriam dominações difíceis, mas uma grande rede de superfície onde a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências se encadeiam uns com os outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder. “Foucault,1976 :139)

O dispositivo, então, seria uma grande textura social que imbricaria leis, instituições, proposições filosóficas, decisões, regulamentações, enunciados científicos, morais, normativos em torno da sexualidade. Vê-se aqui, perfeitamente descrita a construção da “diferença sexual” e da heterossexualidade compulsória.  Trata-se do “verdadeiro sexo” algo que tem suas propriedades intrínsecas e suas leis próprias, diz Foucault (Foucault, 1976 :201) O verdadeiro sexo, o masculino, o referente, o ordenador, eixo em torno do qual gira todo um aparato identitário.

O dispositivo da sexualidade , investimento social e econômico – patriarcal e capitalista – instala a hipersexualização  na necessidade de sexo e de sexualidade  como expressão e fundamento identitário, eixo de vida,de valor, de importância, de poder. Binário, assimétrico, hierárquico,  sexo “natural”,  “verdadeiro sexo”, heterossexual.

Na atualidade, entretanto, esta sexualidade, estimulada por todo um aparato mediático e imagético torna-se, para muitas mulheres,  eixo de seu processo de subjetivação, de sua constituição enquanto sujeito no social. Na linha da sedução e da afirmação de si pelo olhar e desejo de outrem, carregam suas vidas na corrida por uma sexualidade, sempre além, sempre insatisfatória. A vida das mulheres gira em torno do sexo do homem e de sua sexualidade. Mesmo o prazer sexual, tão reivindicado pelos feminismos contemporâneos se baseia sobre o modelo masculino : a performance, o número de vezes, a ansiosa espera do próximo encontro sexual, uma sexualidade nunca satisfeita

Entretanto, ninguém me faz crer nestes orgasmos instantâneos, neste prazer inefável, produzidas em alguns segundos de gritos e sacudidas e que nos é servido como modelo na televisão e no cinema. Coloco aqui em dúvida o prazer desta cópula apressada, cuja finalidade é a penetração. Coloco em dúvida também o orgasmo vaginal, quantas jovens e menos jovens se perguntam: “afinal, é apenas isto?” Ao des-natualizar, surgem questões antes encobertas pela norma, pelo receio de ser anormal – eu não sinto assim”-, por uma premência/ necessidade  construída pelas práticas discursivas vigentes.

Nesta perspectiva, as mulheres vivem a sexualidade de diferentes maneiras : - enquanto representação do próprio sexo, sem entretanto, possuí-lo ( o verdadeiro é o masculino); - enquanto objeto da sexualidade;- enquanto responsáveis da sexualidade e suas conseqüências procriadoras;- enquanto mercadorias sexuais de troca e venda; - enquanto sujeitos de um desejo sexual impreciso, ligado a uma difusa noção de obrigação/ dever / necessidade; - enquanto veículos de transmissão de doenças; - e a lista é longa...

Foucault indica algumas estratégias históricas do dispositivo da sexualidade que ordenam o lugar do feminino nas relações sociais. Diz ele:

“ assim, no processo de histerização da mulher, o “sexo” foi definido de três maneiras: como o que pertence em comum ao homem e à mulher; ou como o que pertence por excelência ao homem e portanto, não existe na mulher; ou ainda como o que constitui totalmente o corpo da mulher, ordenando-o inteiramente às funções de reprodução e perturbando-o sem cessar pelos efeitos desta mesma função”.do interior.  (Foucault, 1976: 201/202)

Constituídas em corpo e apenas corpo, regidas por seus hormônios, como confiar responsabilidades às mulheres, como dar-lhes direitos, posições, poderes, autoridade? Reconhecem aqui o discurso da TPM? É o numero dois da histeria, o retorno.

 Há,nestas história e imagens, todo um processo de repetição e re-instauração da diferença sexual e de um feminino devorador, insaciável, assujeitado, contente de sê-lo. “Afinal, quando dizem não querem dizer sim, é isto que elas querem” afirmam os garanhões brandindo suas armas.

As publicidades, os e mails indesejados não cessam de louvar o sexo – quanto maior melhor, acreditam os homens – açulados pelo dispositivo da sexualidade que reza: sexo, cada vez mais sexo para significar vida, poder, autoridade, status. Impotência tem um significado muito mais amplo que a simples perda da potencia sexual: é toda uma cartografia de vida que se desenha na sexualidade, poder para os homens. O sentido do estupro , afinal, é o da afirmação de poder e da posse de alguém – este é o prazer maior.

Com seus tentáculos múltiplos, suas estratégias e técnicas, suas pedagogias sociais, o dispositivo da sexualidade, conjugado a um sistema patriarcal, instaura espaços fechados de ação e pertencimento no político, dividindo o humano por sexo, idade, imagem corporal.

Estou cansada de ouvir falar de diferença sexual, de “natureza”, fora do âmbito das relações sociais. Nós, feministas, cujo lugar de fala autoriza e nega a ordem do discurso patriarcal e a representação da “verdadeira mulher”, podemos construir outras subjetividades, para além das determinações do biológico. Acompanho Foucault em sua análise de uma estética da existência, a invenção de si como uma obra de arte, na itinerancia dos dias que passam e cobrem de neve, aos poucos,  nossos cabelos. Práticas políticas que inventem novas maneiras de ser, para além do sexo, da sexualidade, de destinos biológicos.

Uma estética da existência é, por um lado, o domínio da criatividade, da produção de um saber viver, da reescrita de imagens, ou da destruição daquelas que nos delimitam. Por outro lado, uma estética da existência é viver sem grilhões, é o fim da ditadura da identidade, lugar fictício da desigualdade: eu me construo ao longo da experiência, ao longo dos dias que criam traços e sulcos em meu rosto, mas que não mais me definem em “diferença”. Minha vida, realidade na qual existo não pode me aprisionar a um corpo construído e modelado em “verdadeira mulher”, antes mesmo de meu nascimento.

Ser feminista é querer mudar o mundo, começando por si mesma, recusando a submissão às regras em vigor que modela “a mulher”. As feministas incomodam, desfazem a ordem estabelecida em torno da heterossexualidade compulsória e suas coerções; ser feminista é tomar a palavra, criar espaço num social invadido por múltiplos poderes de domesticação. .Não, uma feminista não é uma “verdadeira mulher”, pois a palavra submissão e diferença não existem em seu dicionário.

Bibliografia

.Guillaumin,Colette 1978. Pratique du pouvoir et idée de Nature, 2.Le discours de la Nature, Questi ns féministes,no3, mai, p.5-28.

Irigaray, Luce, 1977.Ce sexe qui n´en est pas un, Paris, les Editions de Minuit

Foucault , Michel .1976. História da sexualidade, vol. 1, Paris, Gallimard