O sexo da arte ou a arte é sexuada

     « Aquilo que jamais foi escrito é feminino »

                   Carole Martinez

O ser humano é histórico. E as relações societárias igualmente. A história e a história da arte são narradas segundo a própria historicidade destes discursos: os fatos assim destacados dependem da importância que lhes são acordadas, das redes de sentido e dos valores que circular no momento de sua explanação.

São, portanto as condições socioculturais, políticas, imaginárias que fundam as representações do mundo e determinam as posições designadas aos indivíduos, bem como seus limites e possibilidades de ação. As significações se entrelaçam e tornam-se nódulos estáveis de verdades admitidas que permitem a diversidade de relações sociais, ou ao contrário, as enclausuram em restritas normas.

Assim, uma cenografia de configurações imaginárias/ lingüísticas/ simbólicas define os seres em instancias de igualdade ou de dominação; estabelece, desta forma, nomes e identidades, criando similitudes e “diferenças”.

Ora, não se é “diferente” senão em relação a alguma coisa ou a alguém. Nesta perspectiva, uma comunidade discursiva se estabelece para fundar o “nós” e os outros, os diferentes. “Nós”, aqueles que têm importância, um lugar de fala, um status de sujeito político, de cidadania, de autoridade: nas sociedades patriarcais, o “nós” é o masculino.

Outrem, pelo qual a desordem e o caos se instalam deve, desta forma, ser apropriado, controlado, subjugado, dominado, utilizado, aniquilado e mesmo apagado da memória. Desta forma, os discursos produzidos sobre a superioridade/ inferioridade dos sexos, das raças sustentam as justificativas das práticas de exclusão. Pois desta “diferença” nascem a importância e o poder de seu “referente”, o masuclino.

Os seres  são portanto, nomeados e percebidos  pelos contornos que lhes são atribuídos, já que se tornam tais como são definidos, em uma série binária infindável. O indivíduo não é mais mestre de seu processo de subjetivação, pois seu ser já é determinado pela essência que se lhe constrói. É assim que os corpos se tornam a marca exterior da identidade social para exprimir a diferença.

Quer se trate de judeus, de indígenas, de aborígenes, de negros, de MULHERES, uma diferença “natural” é instituída para melhor selar a dominação: é o biopoder, a biopolítica em ação, a colonização dos corpos. A naturalização da diferença tenta esconder, de fato, que as relação sociais são baseadas sobre variáveis biológicas, dotadas de uma incontornável historicidade.  O “ser mulher”, nesta perspectiva, nada tem de uma  essência qualquer, mas é uma figura contingente e  histórica que aparece quando a  “diferença” se torna instituição.

Além da violência material e simbólica, todos os meios de persuasão são úteis para constituir o grupo dos “referentes” e subjugar os “diferentes”: as leis, a escola, a tradição, a religião, a memória social, a filosofia, a produção do conhecimento, os meios de comunicação, a literatura, a arte, e claro, a força bruta.

O grupo definido pelo sexo enquanto « mulheres » especificadas por um corpo « outro » determina por oposição “o homem” aquele cujo sexo afirma a predominância e a superioridade. Assim é o masculino que encarna a imagem e representação do humano como a fonte de toda produção e criação humanas.

É assim que a “diferença dos sexos”, uma das variáveis da dessemelhança torna-se o eixo do dualismo biosocial e da hierarquia que  se desenha. E a cartografia do social se dobra à esta dicotomia, pois há aqueles dos quais se fala e aquelas que são silenciadas e esquecidas. Desta sorte, na história da arte ou nas narrativas históricas mais gerais, as mulheres não aparecem senão de forma marginal ou como exceção à regra.

 Braidotti afirma que:

«  As posições « ser idêntico a » e « ser diferente de «  definem, portanto as relações assimétricas de poder. “Ser diferente” tornou-se sinônimo de “valer mais que”, a diferença assim adquire conotações tanto essencialistas que fatais, reduzindo categorias inteiras de indivíduos- marcados como sendo os outros – ao status de corpos descartáveis: ligeiramente menos humanos e em conseqüência, bem mais mortais.»[1] (Braidotti, 2009 : 75)

A “diferença dos sexos” é sempre invocada para limitar a participação das mulheres aos eventos políticos, sociais, esportivos, artísticos, científicos, para imobilizá-las e reduzi-as a seus corpos e, sobretudo para limitar suas presenças e capacidades nos fatos e na memória dos acontecimentos.

O masculino expulsa assim o feminino do humano e da história da humanidade a partir de sua “diferença”.  Pois há o humano e as mulheres. Há a Arte – masculina e em maiúsculo- e a arte das mulheres, atividade secundária e menor, ou seja, doméstica.

Na trama intrincada de fatos que  compõem as narrativas  histórias, podemos encontrar quatro momentos: a- o acontecimental, aleatório, que  deixa porém,vestígios esparsos; b- o da de elaboração discursiva sob formas diversas ( imagens, documentos, relatórios, etc) ; c- o da leitura e seleção destes últimos para dar corpo à  sua narração interpretativa, dita “histórica”. O quarto é uma história cujo lócus de enunciação se expõe, assim como suas condições de produção e de imaginação, isto é, uma história que não busca a verdade, mas tenta decodificar . em sua análise, o regime de verdade em que se inserem os enunciados, com seus valores, normas e signifacados.

O primeiro momento concerne à explosão dos eventos, o fortuito onde se produzem os fatos humanos: uma infinita diversidade, fragmentos impossíveis a apreender em sua pluralidade social e suas maleáveis significações temporais.

É onde os seres humanos adquirem suas faces e contornos, habitados por sentidos e valores cuja marca é a historicidade. Assim, nada pode justificar o universal de relações binárias e hierárquicas em toda parte e desde sempre; não há nenhuma razão plausível para que os papéis sociais sejam sempre idênticos, de maneira a- temporal. Sobretudo para a narrativa histórica, cujo fundamento é a temporalidade.

É neste nível que se pode encontrar o sabor do novo, distante da monótona narrativa do Mesmo, da divisão binária, da diferença, da reprodução como vórtice das relações humanas.

Mas a comunidade discursiva, o « nós” patriarcal comanda a visão única das incontáveis arranjos sociais a partir da dominância representacional do sexo e da heterossexualidade reprodutiva. Os sentidos e verdades que circulam no presente são derramados sobre um passado obscuro do qual quase nada sabemos.

Assim, no domínio da educação e da divulgação, em todos seus níveis surge “homem” como sinônimo de humano e de sujeito de ação. Toda significação é, portanto criada em função do masculino e para a memória social as mulheres não teriam participado dos acontecimentos humanos senão como espectadoras ou moeda de troca.

É deste modo que a ação político-social das mulheres é obscurecida pelo etnofalocentrismo da narrativa histórica que se ocupa apenas dos fatos e gestos masculinos.

Uma crescente vaga de pesquisas feministas atuais apresenta, assim, desde a alta antiguidade, personagens históricos femininos em funções de realeza ou  administrativas/religiosas, artísticas, pouco ou nunca mencionadas

Creta, Esparta, Ásia Central, norte da África, países árabes, Irã, Iraque, China, mesmo a Europa continental abrigaram povos entre os quais as mulheres exerciam todas as profissões e funções sociais. [2] Na antiguidade anterior aos gregos não se fala das mulheres ( salvo em obras muito especializadas) e nos cursos universitários e secundários em geral nem se menciona as formações sociais destas épocas que, entretanto, formam a mais longa parte do caminhar humano. Entretanto, os fatos humanos, ilimitados e infinitamente complexos  deixaram uma profusão de pistas, traços, monumentos, pinturas, grafismos que exprimem os mistérios de mundos inesperados.

É a partir destes que se encontra o segundo momento da história, o da seleção dos vestígios, das obras e dos registros, que expõem um inventário contingente dos acontecimentos. Assim se em uma dada época, os fatos são consignados sob formas diversas, os registros serão escolhidos para compor um corpus discursivo que, no terceiro momento, abre espaço para a interpretação, segundo as condições de possibilidade da  época em que é elaborada.

É este último que forma a narrativa histórica cuja principal característica é a parcialidade e a exclusão, apesar da alegação de veracidade com a qual se reveste. Com efeito, são as representações sociais e os valores do narrador que ordenam este discurso com foros de verdade. São estas narrativas sobre o humano, chamadas “história”  e todos seus derivados, como a história da arte, que compõem a memória social e as representações “verdadeiras” das relações sociais.

Assim, sob o domínio do patriarcado, quando se proclama « o homem descobriu, o homem criou » não está se falando do humano, mas sim dos seres no masculino, dotados de um penis, única marca definida para  afirmar  sua “superioridade”.

É uma premissa que paira no ar e investe o social: a instituição que se ocupa de preservar as pinturas parietais da Serra da Capivara, Piauí, se chama “Fundação do Homem Americano.”

Imagens Serra da Capivara, Piauí

                       

                     

     

                       

                              

 

 

Estas imagens são vestígios brutos da história do Brasil. Quem pode, entretanto, assegurar que estes magníficos desenhos datados de milhares de anos é obra masculina? De que realidade falamos, que relações emergem destas imagens?

A imensa maioria das pinturas não apresenta marcas sexuais: o sexo aí não teria a mesma importância que no presente? Na narrativa interpretativa sobre estas imagens, Anne Marie de Pessis, que trabalhou nas escavações da Serra da Capivara estima que:

«  Considerando a natureza das atividades representadas pelas figuras sem diferenciador sexual, pode-se pensar que se trata de uma sociedade em que a divisão sexual do trabalho inexiste e, portanto, em que a mulher participaria de todas as atividades que em outras sociedades são reservadas aos homens.”[3] (de Pessis, 2003:236)

Entretanto, no mesmo parágrafo, a autora faz outro tipo de afirmação:

“ Existem sociedades primitivas em que as formas de organização são mais ou menos de igualdade, mas a dominância institucional do homem é uma constante na encenação social. Uma constante que, como foi visto, possui formas atávicas de origem biológica, nos primórdios da cultura humana.”(idem)

E o “natural” biológico retoma o centro da explanação, sem nenhuma argumentação. Ainda mais: “as sociedades primitivas”, igualitárias, que se oporiam ao patriarcal “civilizado” e hierárquico são remetidas à sua condição inferior. É assim que a igualdade naufraga face à diferença.

Desta forma, o assujeitamento da autora aos discursos   patriarcais  não autoriza a possibilidade da existência de uma sociedade igualitária, apesar do discurso das imagens. Em uma sociedade patriarcal, se expulsamos do imaginário social o “natural” da dominação masculina, ele volta a galope.

Em oposição ao « atavismo » os colonizadores portugueses, em sua época (século XVI) afirmavam seu espanto diante da liberdade e da atividade feminina em todos os setores das sociedades indígenas extintas, que escapam das dobras discursivas dos pressupostos androcentricos. A história do Brasil ensinada e repetida nas escolas leva em conta este testemunho?

Outra perspectiva se esboça com Jeannine Davis Kimball, arqueóloga feminista que fez escavações ao sul da Sibéria e do Cazaquistão: ela encontrou oferendas mortuárias feitas às mulheres que revelam uma iconografia e uma estilística complexas, cujos traços culturais sobreviveram por mais de 2000 anos. Ela afirma que estes artefatos indicam uma alta posição para as mulheres enquanto sacerdotisa, guerreiras ou ambas as funções. [4] (Kimball, 2012:web)

O povo nômade  Sármata [5]  aparentado aos Citas habitou as estepes russas do rio Don ( na Rússia) às montanhas do  Ural e no oeste do Cazaquistão a partir do século V AC, explica Kimball. Nele, as mulheres desempenhavam todas as funções, governo, guerra, caça o que é atestado por um grande número de tumbas femininas dos séculos VI ao IV AC contendo armas e equipamentos de equitação. Neste caso talvez estejamos próximas das Amazonas citadas por Heródoto,  mas relegadas pelos historiadores patriarcais ao domínio do mito.

Estas descobertas revelam a pluralidade das formações sociais e suas divisões de trabalho e funções. Como eram as relações sociais nestas épocas? É evidente que as significações sociais das denominações “mulheres” e “homens” eram outras, bem diversas do sentido hierárquico que se lhes atribui o sistema patriarcal. Como Rosi Braidotti, poderíamos talvez chamá-las de “figurações do humano”.

Images Kimball


              

 peuples nomades

Heródoto relatou a história de Tomyris (500 BCE) a rainha guerreira dos Massagetae, tribo da Ásia central que lutou contra Ciro, o primeiro rei Aquemênida da Pérsia. Vencedora, ela ordena que seja decapitado. Mas seu nome não é evocado nos livros de história. Se Heródoto é considerado “o pai da história” seus  relatos seriam fontes para o segundo momento do “fazer história” e mostram os valores diversos que se compunham os sentidos vigentes à época. Porém, quando fala dos feitos das mulheres no imaginário patriarcal dos  historiadores seu discurso torna-se irrelevante ou mítico e assim se apagam toda traço das  mulheres.

Há uma profusão de nomes e feitos ligados às mulheres em lugares e épocas diversas e para citar apenas dois ou três, podemos assinalar Hatshepsut, faraó do Egito[6] (web),Zenóbia, rainha de Palmira ( Síria atual) no século III que conquistou uma parte da Ásia Menor e desafiou os romanos; Arsinoe II, rainha da Trácia e do Egito (350AD) ou Bodiceia, rainha dos Celtas Iceni, que lutou também contra os romanos em 60DC, todas mantidas sob silencio no que diz respeito à “grande” história, a dos homens.

             Hatshepsut

 

Tomysis

 

zenóbia

arsinos

Boudicca and Her Chariot

Pobre Cleópatra, de seu poderio real não se conhece senão sórdidas histórias de paixão e morte. Quando se menciona as rainhas guerreiras, de sacerdotisas soberanas  insiste-se em falar de seus maridos e filhos. É assim que na epopéia de Gilgamesh – o primeiro texto conhecido, 3000 AC-  a sacerdotisa que socorre o herói se transforma no discurso histórico em prostituta “sagrada”, mas prostituta. E isto dá origem à expressão “ a mais antiga profissão do mundo”.

Enfim, quando passam a existir nas narrativas históricas, as mulheres são remetidas ao sexo, ao ventre, a uma especificidade “feminina” para melhor desacreditá-las em seu lugar de poder. Dentre os celtas, os germanos, os pictos, os “bárbaros”, as mulheres detinham um alto status social de sujeitos políticos: seria esta a razão para serem chamados de “bárbaros”?

O silencio dos historiadores é sistemático quando as fontes se referem aos atos e realizações das mulheres. A presença destas tanto na  cena artística quanto política aparece em inumeráveis vestígios discursivos e imagéticos quando não foram destruídos de propósito, como a obra poética de Safo, da qual nos restaram alguns versos truncados.

É claro que o primeiro momento histórico, aquele dos acontecimentos está perdido para sempre. Mas em seus vestígios podemos cartografar o humano sob aspectos que a história silenciou e ocultou à memória social. Tudo se passa como se o discurso interpretativo fosse o espelho dos fatos para a memória social, amputada de suas condições de produção e de sua historicidade.

Em conseqüência, a história narrada no masculino aparece como a descrição “verdadeira” das relações societais nas quais as mulheres teriam contribuído apenas com o produto de seus ventres. São as feministas que começaram a revelar a presença ativa das mulheres, sujeitos políticos em todas as épocas, relegadas à reprodução e a um sexo utilitário.

Não é suficiente, porém, inserir as mulheres na história masculina.

As historiadoras feministas, assim, inauguram  outro momento – o quarto- para a  pesquisa e a escrita da história: a decodificação das possibilidades sociais submersas pelas três outras. É a ocasião da descoberta de uma humanidade que não teria sido regida pelos genitais, pela sexualidade, pelas formas do corpo, da cor da pele: é uma outra narrativa a partir de um olhar feminista sobre os documentos históricos e sua historiografia enviesada pelo sexo. É a descoberta de faces diversas, inusitadas, que povoaram o caminhar humano, ocultas à pesquisa pelos moldes interpretativos do patriarcado.

Desta forma, a dissolução das narrativas históricas masculinas, universalistas e binárias, contribui para a construção de uma nova memória social, de um novo sujeito feminino, político, filosófico, artístico, que não é mais o “outro”, nem o “diferente” mas que esboça no espaço exterior, um espaço de movimento e criatividade. De fato, para as feministas, o corpo das mulheres não é mais uma prisão identitária mas uma superfície de transformações do pensamento e da apreensão do monde, fora do esquema binário sexuado. Quando se recusa a “natureza” dos seres se lhes confere uma plasticidade “ impossível” nas condições de imaginação patriarcais.

Este quarto movimento é assim uma pesquisa cuja hipótese é a diversidade das relações humanas que se desfaz dos estereótipos e das premissas androcentricos e binárias. Desta maneira, pode-se pensar uma história que nos mostre as possibilidades de um mundo outro. Para isto, é preciso ultrapassar a marca do “gênero” que compõe o par sexo / gênero, ainda binário, ainda universalista, ainda baseado sobre a biologia “relacional”.

A afirmação de Judith Butler encontra aqui toda sua amplitude, pois não há gênero fora de práticas de gênero. É por esta razão que prefiro utilizar a noção de sexo social[7] em lugar de gênero, pois esta noção invoca a historicidade das relações humanas. Não se nasce mulher, torna-se mulher, dizia Simone de Beauvoir e não se pode descrever melhor o sexo social.

É o que faz a historiadora feminista: arranca os tchadors, as burkas, os crepes e véus que cobrem as mulheres no exercício de suas profissões, das artes, dos acontecimentos e relações societais plurais. Pois o que a história não diz, jamais existiu!!! As feministas são os arautos de uma nova memória social que abre às meninas o presente e lhes confere um passado, no qual podem encontrar modelos de ação. Desta maneira, uma história “fora” das perspectivas sexuadas mostra as possibilidades de um mundo outro. Somos, feministas, “forasteiras de dentro”, como quer Linda Hutcheon.

E é assim, que as mulheres e suas obras, quer seja no domínio da produção, da arte, da economia, da governança reaparece nas narrativas históricas feministas.

A história da arte

A história da arte sofre as mesmas seqüelas relativas à seleção e interpretação dos vestígios e dos documentos para a elaboração das narrativas. É um domínio de múltiplas significações e abordagens: desde a arte parietal até nossos dias, quando se fala de arte, do que se está falando? Os discursos dos museus são muito eloqüentes: o que comanda a escolha dos curadores, o que é considerado digno de ser preservado? Pois há a Arte e a produção artística das mulheres. Porém, os vestígios são numerosos, é preciso apenas fazê-los surgir nos relatos históricos.

Plínio, o Antigo, (I século DC) consagra algumas linhas sobre as mulheres artistas no livro XXXV de sua História Natural, (parágrafo XL): menciona Timarete, autora de Diane, que se encontra em Efeso, e que, segundo ele, pertence aos mais antigos monumentos da pintura; Irene, Aristarete e Lala de Cyzique da qual ele louva as obras. Diz ele:

 « [...] ela fez sobretudo retratos de mulheres, temos dela um grande quadro de uma velha em Nápoles; ela fez também seu próprio retrato usando um espelho. Ninguém em pintura, porém teve tanta presteza, tanta habilidade, e suas obras se vendiam muito mais caro que as dos dois mais hábeis pintores de seu tempo, Sopolis e Dionysius, cujos quadros invadem as galerias. »[8]

Além de serem artistas, as mulheres eram igualmente mestras para o aprendizado de técnicas em diferentes ramos, como Olympias, mencionada por Plínio. [9] Em literatura e filosofia as mulheres eram numerosas como sublinha Lucia Gaiardo “[...] de todos os escritos femininos quase nada nos restou, senão algumas alusões nos escritos masculinos”( Gaiardo :114 web)[10] É assim que Pamphylia, cujja obra contém 33 volumes sobre a história da Grécia teve seu nome apagado da História; ou então Hypatia, matemática e filósofa que viveu de 371 1 415, professora de filosofia no museu de Alexandria, muito famosa à sua época, mas cuja obra desapareceu. (Gaiardo :114 web)


                                                    Pintura encontrada em Herculanum e conservada atualmente no museu nacional de Napoles representando uma mulher na tarefa de pintar.

Nesta perspectiva, a história da arte sofre das mesmas deficiências quanto à seleção e interpretação dos vestígios e documentos do passado. Domínio de múltiplas significações e abordagens, desde a arte parietal até nossos dia, quando se fala de arte, do que se está falando? .[11] As coleções dos museus são discursos eloqüentes na exclusão das obras femininas: o que ordena as escolhas dos curadores, o que é considerado digno de ser preservado? Temos aqui outro exemplo do binário, pois há a “Arte” e a produção artística das mulheres.

O que se poderia dizer dos imensos lapsos de tempo que cobre toda a história da humanidade antes dos Gregos, que para a história representam o início da “civilização”?

Se fizermos um salto da alta antiguidade aos longos períodos que compreendem a idade média, podemos verificar o enorme leque de profissões exercidas pelas mulheres. Régine Pernoud fornece uma lista de 150 ocupações, encontradas em arquivos que cobrem todas as atividades sociais, cutelaria, forja, medicina, padaria, todos os misteres têxteis, hotelaria, trabalho de couro, grande e pequeno comércio. (Pernoud, 1980) [12]

 Miniaturistas, copistas, suserana, rainhas, herdeiras, é a partir do século XVI que as mulheres perdem aos poucos sua “capacidade jurídica” para seus maridos. [13] (web) E o que dizer sobre as outras regiões do mundo, outras formações sociais? É interessante notar que o Oriente Próximo atual, onde as mulheres são os seres mais oprimidos, era a região onde os vestígios mostram o prestígio da presença e ação das mulheres no cenário político-social. [14]

                    

             

                    

          

Na Europa do medievo, as tapeçarias que embelezam os castelos, as iluminuras que ilustram os livros e manuscritos foram também obra de mulheres. As iluminuras, praticada pelas mulheres durante séculos e suas assinaturas (colophons) nestas obras são muito numerosas. Sem contar as anônimas, cujo crédito vai para os homens, “naturalmente”.  Agnes Van den Bossche e Clara de Keysere , por exemplo, pinturas e miniaturistas da Idade Média tardia   «[...] eram aliás renomadas em sua época e seu talento era bem reconhecido  mesmo se suas obras hoje praticamente desapareceu” diz Therese de Hemptinne [15]

·         Nous trouvons la première enluminure qui porte un nom de femme, dans un manuscrit espagnol de l'Apocalypse, en 970 :"Ende pintrix et Dei Aiutrix et Frater Emeterius Prêtre".[16](web)                                                                                                                                                                     

[17]      [18]

[19]

Desta forma, se nos acontecimentos humanos houve pintoras e artistas em geral, suas obras são o que deles restam, seus vestígios. Mas o relato histórico sobre a arte as esquece nos porões e depósitos da memória e dos museus.

Basta pesquisar um pouco para que se revelem um grande número de mulheres artistas em diferentes especialidades. Elas podiam mesmo fazer da arte seu meio de vida como Mary Beale  ou Sofonisba Anguissola , Rosalba Carriera, Lavinia Fontana,   cujas reputações atravessaram as fronteiras. [20]

Entretanto, suas biografias insistem em discursar sobre seus pais, maridos, filhos em vez de detalhar e analisar seus trabalhos. Artemísia, grande pintora italiana, famosa em seu tempo tem, colado a seu nome, toda uma sombria história de clausura familiar e estupro.

Mas  as perdas de direitos políticos que foram aos poucos impostas às mulheres à partir do século XIV, não as impediu de realizar obras notáveis. Alguns exemplos :

1531 Sofonisba Anguissola

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Mary Beale 1633-1699, Angleterre

Caterina de Hemessen16 Anvers 1527-28 - 1581-87

..

 1648 – 1711 Élisabeth-Sophie Chéron,.écrivaine, traductrice, musiciste

7

Barbara Longhi Ravenne 1552 - 1638

57

Clara Peeters 1594  . 1657

Rosalba Carriera 1675, Venise.

Bologne 1638 – 1665 Elisabetta Sirani

Lavinia Fontana 1552-1614

Artemisia Gentileschi - 1593 - 1652   née à Rome

A incapacidade atribuída às mulheres de realizar grandes obras é devido, sem dúvida, às normas que as impedia de desenvolver suas aptidões, limitando ao mesmo tempo suas possibilidades de ação. As mulheres artistas, conhecidas e respeitadas em suas épocas perderam seu lugar e sua historicidade nas narrativas masculinas que criam para os homens domínios reservados.

Assim, as narrativas históricas são perversas pois dão um peso de verdade à esta confraria masculina que insiste em apagar a metade da humanidade de seus discursos, entre os quais a história da art. A ficção da “natureza” monta uma cenografia onde apenas os homens atuam, kabuki insensato onde o travestimento não consegue esconder seu desejo de viver “entre si”, de apagar os traços das mulheres para melhor sujeitá-las no imaginário e na memória social. Ou melhor, para valorizar um masculino que em si, não tem absolutamente a importância que lhe é atribuída.

Os fatos imponderáveis são a matéria para a história, os vestígios seus testemunhos, mas suas narrativas se ordenam segundo um princípio ideológico, narcisista, segundo uma vontade de verdade que erige em dominação a fraqueza de seu aparato, o patriarcado.

A história mata simbolicamente as mulheres  e as condena aos limites de um corpo reprodutor para evitar que seu brilho ofusque a banalidade das eternas disputas, guerras, crimes,  violência e vontade de poder masculinas.

A  filosofia e a história transbordam de ódio e de medo das mulheres, em seus rompantes misóginos que mal escondem o desejo de aniquilação de outrem para melhor reforçar o “nós” da classe dos homens.

         A diferença dos sexos não é, portanto, senão a materialização da violência da divisão binária do mundo sob os traços de uma “natureza” que não consegue dissimular as garras do patriarcado. E a história é o arauto do masculino, cadinho de uma violência material e simbólica que constrói as mulheres em superfícies corpóreas para assim suprimir sua presença e ação político-social, e a arte é uma de suas expressões.

         A história criou um imaginário social tão arraigado que temos ainda que argumentar, explicar, mostrar que a narrativa não corresponde aos fatos e que mulheres e homens são figurações atuais do social, mas que podem ter sido totalmente outras, onde o sexo não é rei e onde o binário pode ter sido múltiplo.

         Sou uma feminista radical? Sem dúvida. Radical no sentido de fazer a arqueologia da construção e assujeitamento das mulheres enquanto tais, mas radical também para propor a quebra dos códigos patriarcais, de suas representações sociais , de seu biopoder  e sua materialidade perversa.

         Já não é sem tempo.


  Referências

[1] Rosi Braidotti,2009. La philosophie là où  on ne l´attend pas,Paris :Larrousse, pg 75

[2] où se trouvent aujourd´hui l´Egypte,  la  Jordanie, la Turquie, l´Arabie, l´ Ethiopie , Israël, la Syrie, la Chine,

Carthage, le Soudan, la Libye,  la Mésopotamie ( Iran, Iraq),  la Chine, les steppes de l´asie centrale

[3] Anne Marie de Pessis. Images de la pré-histoire, Fundham/Petrobrás, 2003. pg 236

[4]  Jeannine Davis-Kimball, Among Our Earliest Amazons Eurasian Priestesses and Warrior-Women   labrys, études féministes/ estudos feministas , juillet/décembre 2012  - julho /dezembro 2012  www.labrys.net.br

[6] Hatshepsut ruled Egypt not only as queen and wife of the pharaoh, but as pharaoh herself, adopting the insignia, including beard, and performing the pharaoh's ceremonial race at the Sed festival [see "Athletic Skill" in Hatshepsut Profile].

Hatshepsut ruled for about two decades in the first half of the 15th century B.C. She was a daughter of 18th-dynasty king Thutmose

[7] Comme l´ont fait les féministes françaises dans les années 1980

[8] Voir également l les noms et biographies d´autres reines de l´antiquité dans le même site :  http://www.mediterranees.net/geographie/pline/livre35.html

[12] Régine Pernoud, 1980, Paris: Stock,  chapitre VII

[19] Hildegarde de Bingen, Vision du Cosmos, Scivias. 12e siècle 1098- 1179

http://www.tumblr.com/tagged/hildegard-von-bingen?before=1329002338