Pequena introdução aos feminismos.

 

 

Quem é feminista?

Você não aceita a desigualdade social pelo fato de ser mulher? Você não aceita salários inferiores, pela mesma razão? Você recusa ser considerada fraca, irracional, recusa o estupro, a violência doméstica, você quer ter direitos de cidadã, liberdade de ir e vir, de ação, de opinião, de escolha, de trabalho? Você preza sua independência como ser humano livre e consciente de ser um sujeito político?

Pois você é feminista.

Não há que temer esta palavra. Ser Feminista não é ofensa, não significa odiar os homens, nem afastá-los. Ser feminista é exigir respeito, respeito à sua integridade física, moral, intelectual. É não aceitar injúria, nem ser tratada como um objeto de cobiça ou propriedade de alguém. Ser feminista é também, e antes de tudo, querer modificar as relações sociais entre mulheres e homens, querer transformar o mundo que revela apenas uma face: a da violência, da dominação, do poder.

De onde vem esta discriminação das mulheres? Da idéia de que existe uma diferença “natural” entre os sexos, que se desdobra em poderes e deveres distintos para mulheres e homens. Esta idéia não se baseia em nada, pois o fato de ter aparelhos genitais diferentes não significa que as pessoas tenham um valor específico, maior ou menor.

Os valores são criações sociais, não existem por si só, fora de sistemas sociais. É assim que as tradições religiosas e as ciências criam as condições, no imaginário social, de impor um sistema patriarcal.  Os sistemas sociais que fundamentam o poder que os homens exercem sobre as mulheres foram denominados “patriarcais”, ou seja, a ordem do pai, simbolizada pelo penis, o aparelho genital que define, ao nascer, o status, as possibilidades que terá uma criança ao nascer. E isto sem levar em conta as potencialidades de cada uma, pois feminino, no patriarcado, é sinônimo de “inferior”. Afirmam e qualificam esta “diferença” para justificar o controle e a dominação que os homens exercem sobre as mulheres, “naturalmente”.

Os discursos que afirmam a existência de uma “natureza humana” assentam o poder do patriarcado a partir de diferentes instituições, entre elas as religiões monoteístas que de início, definem a “diferença” para melhor tornar inferior o feminino, invocando culpas e pecados que só pertencem à sua imaginação e sua vontade de poder. Quer seja usando a bíblia, o alcorão todas as religiões monoteístas tem como fundamento o controle e a disposição dos corpos das mulheres e sua inferiorização em relação aos homens. Nelas, a “vontade de deus” é igual à “vontade dos homens”. E esta é uma vontade de poder, de controle, de domínio, de utilização.

Em termos de linguagem, os insultos às mulheres estão presentes na filosofia, nos discursos religiosos, nas ciências físicas e sociais, na mídia, quando apontam o feminino como uma expressão falha ou inferior do humano e quando representam as mulheres apenas como um corpo a ser desfrutado.

 O que se vê nestes discursos sociais diversos sobre as mulheres é exatamente a mesma coisa que se ouvia ou lia a respeito dos negros, para justificar a escravidão: seres desprovidos de razão, destinados apenas ao trabalho, corpos disponíveis para seus senhores, embrutecidos de mente e corpo, quase seres não - humanos.

Se no caso da escravidão, o eixo era a cor da pele, quanto às mulheres o ponto principal é a “diferença” de sexo. No século XIX, a linha de argumentação era a classe, pois os mesmos discursos justificavam a exploração dos operários e operários, das crianças de ambos os sexos, que trabalhavam 14h por dia, afirmando sua inferioridade, o seu lugar “natural”. Mão de obra necessária ao progresso, eram colocadas por obra divina nesta posição, e sua opressão era considerada “natural” para este tipo de humanidade “diferente”. É preciso observar, em toda “diferença” seu processo de diferenciação, que é sempre histórico e social.

Qualquer idéia de “diferença” supõe algo a que ela se refere. Nada é diferente sozinho, é necessário um “referente”, um modelo ao qual se comparar. No caso das sociedades patriarcais, o referente geral é o homem, branco, heterossexual, de preferência de uma classe econômica superior.

Em se tratando da “diferença sexual” porém, qualquer homem se sente e se considera superior às mulheres, qualquer homem se acha no direito de se apropriar socialmente de uma ou várias mulheres, nas diferentes instituições ou ações que o possibilitam: casamento, prostituição, estupro. Este último virou atualmente quase uma instituição, pois é utilizado como arma de guerra, acontece em todas as classes sociais e são cada vez mais numerosos: sua banalização o torna quase “normal”. E uma punição legal não afasta a representação patriarcal de que todas as mulheres pertencem a todos os homens, a não ser que sejam propriedade de apenas um, no casamento.

“Afinal, o que elas estavam fazendo fora de casa, porque usavam roupas provocantes, porque não estavam em seu lugar “natural”, de esposa, mãe, em casa, porque andavam na rua, sozinhas (sem um homem ao lado)?” estas são as argumentações correntes para tornar culpadas as vítimas de violência sexual. O estupro usa o sexo para afirmar o poder do masculino; o prazer do estupro, na verdade, é o controle e a dominação.

 “ Quando dizem não, querem dizer sim”, “Todas querem isto”, “Bebida e mulher”, estas são imagens da apropriação naturalizada dos corpos femininos, seres sem vontade própria, cujo destino é, ou procriar ou dar prazer, de acordo com o imaginário patriarcal. Há uma enorme cumplicidade e condescendência entre os homens para justificar atos de violência e de dominação em relação às mulheres. Porque nunca se viu um movimento dos homens contra a violência de sexo?

A “diferença dos sexos”, portanto, apesar de existir fisicamente enquanto genitália, não significa nada em si, pois todas as pessoas são diferentes entre si; eu sou diferente de mim em relação a qualquer momento do passado. A idéia de “diferença dos sexos”  serve, de fato, para regular, domesticar, ordenar a conduta, o comportamento, os limites impostos às mulheres nas formações sociais patriarcais. Nesta idéia, está embutida a noção de superioridade masculina, que só existe no imaginário patriarcal, e que a instala como referente. Já ouvi argumentos sobre a força e o tamanho, para sustentar a superioridade masculina; entretanto, se isto fosse um parâmetro, gorilas e ursos seriam superiores a todo homem.

Por outro lado, a força e o tamanho são relativos à nutrição, à educação, aos comportamentos aceitáveis socialmente para meninas e meninos; as meninas são domesticadas para serem frágeis e adotam esta atitude para sua inclusão social; assim, se compararmos a força de uma mulher cortadora de cana, endurecida pelo trabalho físico, com a de um professor de filosofia, a superioridade masculina ficaria certamente anulada.

O que existe é uma representação social , uma imagem que identifica o masculino à importância, autoridade e poder social. E neste sentido, todos os argumentos são utilizáveis para isto justificar. Não se dizia antigamente que o cérebro dos homens era maior e por isto eles eram mais capazes e inteligentes? Ora, verificou-se que justamente o tamanho relativo do cérebro quanto ao corpo era superior nas mulheres. E o argumento foi esquecido rapidamente...

Felizmente, as ciências, hoje, questionam seus fundamentos e desta forma pode-se desmascarar os preconceitos que deram origem à inferiorização das mulheres no imaginário patriarcal.

 Mas na verdade, é do controle, dominação e exclusão simbólica / social das mulheres que se trata, enquanto sujeitos políticos, de ação, de razão, de entendimento. Em grande parte dos países são excluídas da educação, da produção do saber, dos postos de decisão e de governo, e isto  as  torna materialmente secundárias. Mesmo nos países onde as mulheres têm seus direitos de cidadania assegurados, participam pouco nas atividades político /econômicas/ decisórias. E todas, sem exceção, estão sujeitas à violência domestica e violência sexual.

Os feminismos contemporâneos, desde sua propagação em meados do século passado, vêm denunciando a divisão binária nas relações sociais e de trabalho: de um lado o feminino, ligado ao domínio doméstico e privado e do outro o domínio público, do masculino, dispondo de toda amplitude de ação no social, inclusive de domínio e decisão  no doméstico. É assim que as feministas criaram estas frases de ordem: “o privado é político” e o “pessoal é político”.

“O privado é político” significa que a própria criação desta divisão é uma atitude política, pois diz respeito à constituição hierárquica da sociedade como um todo. Ou seja, é um sistema social que a partir da noção de “público”, atribui toda importância, poder, autoridade, para esfera do masculino; para o feminino resta o domínio do privado, da família, da reprodução, da domesticidade. Ou seja, denuncia as representações e instituições patriarcais que regem o social e  restringe as mulheres às funções de seu corpo, seja para procriar, seja para dar satisfação aos desejos e caprichos masculinos. Os feminismos viram e denunciaram neste sistema uma forma de apropriação de trabalho feminino sem remuneração e sem reconhecimento social, o que chamaram de “modo de produção doméstico”.

 O sistema patriarcal, portanto, ao estabelecer dois setores no social, estava criando um processo de diferenciação sexual, ligada à expressão do “natural”. Ser homem, neste sistema, passa a ser sinônimo de razão, criação, autoridade, poder e ser mulher, limitada a seu destino biológico, significa ser mãe, esposa, dedicada, cuidando de todos, das crianças, dos velhos das famílias, dos doentes. Ou prostituta. Ou histérica, ou autoritária, ou masculinizada, caso recuse estas funções.

 Ser mulher, portanto, em um sistema binário de poder significa ter um lugar limitado de ação e de importância. Nada tem a ver com uma essência qualquer, com uma “natureza” que a limita à esfera de seu útero ou a seu corpo, como horizonte último de seu ser social. Feminino e masculino, em seus papéis na sociedade constituem o “sexo social”, ou seja, compõem um conjunto de características tratadas em hierarquia, superior/inferior, dominador /dominada. 

Por outro lado, “o pessoal é político” é um alerta para a própria condição de “ser mulher”, para a auto-imagem, para a conscientização de que “mulher” significa no social ser o contrário de homem, ou seja, desprovida de todos os atributos viris.   É um personagem de doação, e dedicação,  mas igualmente de sedução, capaz de manter e despertar o desejo e responder à sexualidade masculina.

 Esta é a “verdadeira mulher” do mundo patriarcal, sem aspirações próprias, sem autoconfiança, sem auto-estima, resumida em procriação e dedicação.  E neste papel está moldada a maioria das mulheres que não tomam consciência da realidade política dos significados de “diferença de sexos”. “Mulher”, no singular, reduz a diversidade das mulheres, seus projetos, possibilidades de ser, de agir, a um só modelo, aquele que  existe para os outros e pelo olhar de outrem.

De fato, que importa o que os outros pensem ao me olhar e me ver? Que importa que critiquem se não tenho filhos ou se não os quero ter? Que me importa se amigos e parentes me julgam, se não aceito insultos ou maus tratos, se denuncio a violência exercida sobre mim ou sobre outras mulheres? Esta é uma postura feminista, de afirmação de si, de construção de si, sujeito político, sujeito de ação e de modificação da realidade em que se vive. Pois a solidariedade, a auto estima são lições dos feminismos.

Mesmo se eu não sou violentada ou insultada, mesmo se não me batem ou excluem, existem milhares de pessoas, chamadas “mulheres” que sofrem os piores maus tratos, exatamente por serem mulheres. Mutiladas sexualmente, vendidas, trocadas, impedidas de sair de casa, de dirigir, de andar na rua, surradas, exploradas, obrigadas a casar, estupradas, elas são legião, pelo mundo todo. E a solidariedade feminista deve chegar até elas, mostrar que há uma esperança na resistência e na ação.

E o patriarcado, este sistema que possibilita todas estas injustiças, sempre existiu? Não.

Dizer “sempre” em história equivale a invocar um mundo sem relações sociais, um mundo estático, onde tudo se formaria da mesma forma, sob o mesmo modelo. Ora, isto é impossível, tendo em vista a dinâmica e a versatilidade das relações sociais. O que há é um discurso repetitivo, que pretende reconstruir as relações atuais nas quais as mulheres são inferiores e apropriáveis. Dizer “sempre” em história é fruto da ignorância ou da má fé.

Ainda hoje existem formações sociais em que as mulheres não sofrem as injunções do patriarcado (na China, entre os povos das ilhas do Pacífico, entre várias tribos indígenas norte-americanas); no passado há numerosos exemplos, como entre os Celtas, os povos minóicos, os Germanos, os Pictos (na Escócia de hoje), na Suméria, em Esparta, na Grécia.  E mesmo entre os indígenas brasileiros, à época da colonização, os homens não possuíam as mulheres e não tinham a mesma representação de masculino e feminino que temos hoje.

Mas os cursos de história nas universidades, ou os manuais escolares silenciam toda sociedade, toda relação social que não esteja dentro do sistema patriarcal. Mulheres guerreiras, mulheres rainhas, mulheres sujeitos políticos, foram apagadas do aprendizado, da memória social e histórica, levadas para o domínio da lenda ou do mito.  Tais sociedades viriam alterar, perturbar a ordem do discurso do pai, do falo, do divino conjugado no masculino.

Os feminismos, em suas diferentes tendências e expressões têm algo em comum: transformar o mundo, modificar as representações, o imaginário social que faz do feminino presa e troféu para o masculino.

Afinal, tudo que se constrói, pode ser desconstruído.