História: construção e limites da memória social

(também plublicado em revista com o título "o que a história não diz, nunca existiu?

Resumo

As narrativas históricas dependem das interpretações dadas aos vestígios deixados pelas sociedades humanas. E assim que a história oficial tem relatado épocas e lugares os mais diversos segundo uma ótica que imprime à realidade as condições de representação do enunciador; deste modo, temos uma eterna repetição do Mesmo nas relações humanas, tecidas em torno do poder, da dominação, do jugo de uns sobre outros, sobretudo no que diz respeito à instauração de um masculino hierarquicamente superior a um feminino "naturalmente" destinado à procriação e à domesticidade.´É o que discutimos neste texto.

Palavras-chave: história, relações sociais de sexo, interpretação, representação social.

Résumé

L´interprétation de l´historien(ne) est la pierre d´achoppement de sa narrative, car il / elle  décide, en fait, ce qui va être mis en évidence, suivant ses propres représentations sociales du monde et des relations humaines. C´est ainsi que le masculin dominateur et supérieur trouve sa place dans les narratives historiques comme une donnée « naturelle », au mépris d´une construction historique des rapports sociaux. C´est ce que j´aborderai ici, dans ce texte.

Mots-clé: histoire, rapports sociaux de sexe, interprétation, représentation sociale

A re-leitura das fontes utilizadas nas narrativas históricas  bem como a crítica à historiografia são imprescindíveis para que surjam as múltiplas realidades,  agenciamentos sociais plurais, que ficaram ocultos no fazer histórico tradicional. O que a história não diz, não existiu, pois o sistema de interpretações que decide sobre aquilo que é relevante para a análise histórica fica oculto nas dobras das narrativas. A questão da autoria, seja na literatura / arte, seja na ciência, está imbricada às suas condições de imaginação e produção, ou seja, o autor exprime, na escolha e recortes de sua temática  as representações sociais, os valores, o regime de verdade no qual se constitui sua experiência e sua subjetividade, como bem assinala Foucault. (1971)

 Em termos  teóricos, neste caso, leva-se em conta a incontornável mediação discursiva das fontes e de suas condições de possibilidade, que nos trazem apenas indícios da materialidade do passado: neste sentido, o fazer dos historiadores, em sociedades patriarcais, exclui da  memória social a diversidade possível das relações sociais, onde sexo e sexualidade não seriam determinantes nem de identidade, nem de exclusões. Eliminam também a possibilidade de sociedades não binárias, não fixadas em uma dicotomia incontornável de gênero, ou ainda, de sociedades onde o feminino tenha tido uma importância inaceitável aos produtores de história.

De fato, a produção histórica tem criado naturalizações, generalidades, que fazem das relações humanas uma eterna repetição do Mesmo; mesma divisão binária baseada no biológico, no genital, cujo referente é o masculino;  mesma concentração de poderes e instituição de hierarquias entre os sexos; mesma compulsão à heteronormatividade, baseada na reprodução, ordem divina. Nas narrativas históricas confundem-se valores e fatos, representações e verdades incontornáveis.

Na realidade, os eixos de importância dos discursos históricos têm variado, de acordo com sua própria historicidade, ou seja, com as condições de imaginação que os orientam. Político, econômico, demográfico, o humano, em suas manifestações mais diversas, tem sido conjugado no masculino; defrontando-se com uma pletora de indícios de sociedades onde o referente social não era o masculino, os historiadores as tem relegado ao ilusório ou ao domínio da desordem, do caos anterior à civilização.

É assim que foram abolidas da memória social a presença e atuação das mulheres em todas as esferas da produção humana. Os pressupostos, neste caso, de uma divisão do humano em que a ação e criatividade seriam apanágio do masculino levam a uma interpretação desvirtuada dos indícios do passado: quem disse, por exemplo, que os desenhos pré-históricos foram feitos por homens? Esta questão não se coloca  na partilha entre cultura (criadora) e natureza (reprodutora), domínios respectivos do masculino e do feminino naturalizados e as narrativas reforçam esta ótica, atribuindo invenções, arte, literatura, ao “homem”, genérico masculino que ao incorporar, apaga definitivamente o feminino.

Como se pode afirmar que  a descoberta do fogo, a criação da  roda,  a invenção de instrumentos, construção de casas e monumentos, de cidades e estradas ao longo da história foi realizada por homens, a não ser por um pressuposto, pré-conceito, de que as mulheres são incapazes de tais feitos? Aliás, a presença atual das mulheres em todos os setores dos quais não são excluídas mostra bem que é por imposição/discriminação que não atuam em certos espaços. Mas em termos históricos, é um contra senso afirmar a ausência pura e simples das mulheres das dimensões religiosas, sociais, políticas, da arte, da criação em todos seus domínios, uma vez que se tenha em mente a historicidade absoluta das relações sociais. Nada escapa à construção e interpretação do real e se a história não fala das mulheres é por pura e simples exclusão androcêntrica, apoiada em valores que se confundem com fatos.

É assim que historiadoras feministas trabalham indícios ignoradas pela tradição histórica e criam uma nova memória social, na qual o humano não é dividido necessariamente em feminino / masculino em termos de atuação social e sobretudo, onde as mulheres estavam presentes em todas as esferas do social. Que arrogância é esta que fixa para a história da humanidade os parâmetros de sua organização, fundada apenas em regimes de verdade cujos eixos são valores arbitrários, crenças e pré-conceitos?

Jeannine Davis Kimball, arqueóloga e historiadora, abre os horizontes de uma história possível, remetida pela tradição ao domínio do fantástico. Assim explicita:

“Mulheres guerreiras, conhecidas pelos autores gregos como Amazonas foram interpretadas como criaturas míticas. Porém, 50 antigos túmulos próximos de Pokrovka, Rússia, perto da fronteira do Kazakstan, com esqueletos de mulheres enterradas com armas, sugerem que os contos dos gregos tinham alguma base factual. [...]. Em geral, mulheres eram enterradas com uma ampla e grande quantidade de artefatos, maior que dos homens e 7 dentre elas continham espadas de ferro e adagas, cabeças de flecha em bronze e pedras para afiar as armas. Alguns estudiosos argumentaram que as armas encontradas nos túmulos de mulheres serviam para um simples propósito ritual, mas os ossos contam uma história diferente. As pernas arcadas de uma menina de 13, 14 anos atestam uma vida a cavalo e em outra mulher, uma ponta de flecha entortada em sua cavidade torácica sugere que foi morta em batalha”. (Kimball, web,1997)

O papel ritualístico das armas, aventado  por alguns historiadores, como comenta a autora, nos dá a medida das representações sociais que ordenam o discurso histórico. Impossível existência de  mulheres guerreiras, isto desconstrói a ordem patriarcal, fundada na força e na violência, em oposição à passividade e fragilidade das mulheres. Logo, armas nos túmulos não podem ser delas, e isto é afirmado sem pejo e sem constrangimento. A naturalização dos papéis e a universalização das relações de dominação do masculino sobre o feminino criam, no imaginário social, a representação de uma eterna e imutável partilha hierarquizada de trabalho e de poder e os historiadores não problematizam estas questões, arrastando suas próprias condições de imaginação para todas as épocas do passado.

O silêncio é político e não falar destas descobertas ou apagar as construções sociais não patriarcais é uma estratégia de poder. As sociedades Maoris, nas ilhas do oceano pacífico prezavam e respeitavam o feminino em todas suas instancias; a chegada dos europeus, porém, impondo suas representações sexuais e sexuadas, pela força e pela religião, modificaram as relações existentes e passaram a ser apresentadas como fazendo parte da grande confraria patriarcal. O mesmo aconteceu na época da descoberta do Brasil, como veremos adiante.

 O patriarcado, este sistema de dominação que cria e confere aos homens poderes sobre as mulheres é também dotado de uma historicidade incontornável e considerá-lo permanente ao longo do tempo é aderir a um sistema interpretativo de crenças e valores, cuja força reside em sua própria repetição. Sem mencionar a pobreza intelectual de uma tal perspectiva. Uma vez traduzidas em dogmas científicos ou religiosos, as relações sociais sexuadas deixam de ser problema ou questão, passando ao domínio incontestável do “natural”. A sabedoria de Foucault convocava à “  destruição das evidências” (1971) e a criação dos corpos sexuados em hierarquia esconde-se sob os discursos de verdade sobre a “natureza” humana.

De toda forma, quer seja nas descrições da vida quotidiana , no panteão religioso e/ ou no exercício do poder, as narrativas históricas primam pela representação de um masculino todo-poderoso e de um feminino relegado à fertilidade/ reprodução. É assim que Kramer( 1983), um dos “especialistas” sobre a Mesopotâmia descreve a hierarquia divina, encabeçada pelo  masculino: os deuses  do céu e da terra, da atmosfera e da água, os quatro elementos criadores. Explicita que os deuses:

” [...[ Para assegurar sua própria subsistência, criaram o omHom Homem, os animais e as plantas.[...] Mas o que o Homem e os animais, mortais e transitórios necessitavam[...] era o Desejo e o Amor, que levaria à União sexual e poderia assim assegurar a fecundação das ´matrizes´. Estas emoções ardentes e ternas ao mesmo tempo,[...] foram confiadas à sedutora, sensual e voluptuosa Innana” (1983:65)

Note-se que tanto os homens como os animais foram criados à suas imagens e semelhanças – machos- fecundadores das “matrizes”, fêmeas à espera de sua  ´substância´ criadora. Portanto, simples receptáculos, tais como Maria, no panteão cristão, é apenas vaso para a semente divina.  E para Inana, nada resta a não ser uma existência unicamente em função da sedução e reprodução, símbolo sexual. As representações do feminino aqui são apenas cópia e reprodução de uma imagem estereotipada do feminino, recriada periodicamente pelas pedagogias e tecnologias de gênero (de Lauretis,1987), fazendo da Antiguidade palco de atuações “naturais” do humano, sempre binário, repetindo sempre a supremacia do macho.

Entretanto, outros autores como E.O James (1989), James Melaart (1971) , apesar de suas interpretações que seguem a idéia do feminino atrelada à maternidade- Deusa Mãe -  traçam indícios de outros aspectos de Inana e da existência de cultos dedicados a deusas criadoras de todas as coisas, tais como Neith, no Egito.

E.O.James assim descreve Neith:

“ [...] sob a XXVI dinastia, quando os faraós de Sais estavam no apogeu de seu poder, Neith  elevou-se a um nível soberano, que foi abandonado depois da queda da dinastia (663-525ac) Até este momento ela era o Ser divino por excelência, o poder soberano que governava o céu, a terra e o lugar dos mortos, assim que todas as criaturas e todas as coisas inanimadas que aí se encontravam. Era eterna e há via se criado por ela mesma, personificando desde os tempos mais recuados, o principio feminino, criador de sua própria existência, que se basta a si mesmo e da qual a ação se reconhece em toda parte” ( James, 1989:65)

Da mesma forma, Inana, deusa sumeriana, que, como vimos, foi relegada ao papel  de instigadora dos desejos masculinos, era representada de outra maneira, mas, no discurso, é enraizada na maternidade ; mesmo armadas, as Grandes Deusas criadoras do universo não conseguiam perder o cunho de um feminino reprodutivo. Se por um lado,

“Iconograficamente, Inana /Ishtar era usualmente representada como uma deusa guerreira, frequentemente alada e pesadamente armada..Era também com freqüência representada em uma constelação de estrelas. O animal a ela ligado era o leão e seu símbolo uma estrela ou um disco-estrela” (web:2005), por outro, como vimos, é domesticada pela ordem do discurso que a define pela sexualidade e reprodução.

Diz James, a respeito da deusa iraniana Anahita

” Como a maior parte das deusas da fertilidade, ela  era representada como uma deusa guerreira e se locomovia em um carro puxado por 4 cavalos brancos, que continha o vento, a chuva, as nuvens e o gelo. Era, na realidade a contrapartida iraniana da deusa síria Anat, da deusa Inana/Isthar da Babilônia, da deusa hitita de Comana e da deusa grega Afrodite. (1989,105)

Para este autor não havia incompatibilidade entre fertilidade e guerra, associando representações excludentes sobre o feminino.  Mas como explicar estes atributos de força e poder, senão ancorando-os na ordem do natural, reprodutor?

Merlin Stone comenta a respeito

“ O estudo das primeiras religiões femininas permanece muito incompleto e às vezes quase esquecidas. Entretanto, revela com freqüência comportamentos e mentalidades que são a antítese destas pretensas tendências “naturais[…]a censura acidental ou intencional no ensino geral e na literatura popular vai até o ponto de negar a realidade de sua importância ou mesmo de sua simples existência” (1978):342)

Além disto, afirma que:

Desde o início do período histórico e mesmo na época neolítica, parece que em numerosas cidades e estabelecimentos, a monarquia já era de ‘direito divino’.[…] Entretanto, nesta época o direito era concedido, segundo toda verossimilhança, não por um deus, mas pela Deusa. Se  nos atemos aos documentos mitológicos e arqueológicos,  este direito  seria concedido, em sua origem não a um homem, mas a uma mulher, a grande sacerdotisa da Deusa. Esta grande sacerdotisa, rainha ou legisladora, recebia seu cargo das mulheres de sua linhagem.[…]Este foi certamente o caso de Khyrim, onde, segundo Frazer, a grande sacerdotisa seria automaticamente chefe de Estado. (1978:201)

Se tomamos a mitologia como produto por excelência do imaginário social (Castoriadis, 1995), grande cadinho forjador de realidades, as narrativas mitológicas sobre as deusas-criadoras, associadas a todas as criações humanas, desde a agricultura até a legislação,  apontam para a diversidade nas relações humanas e relações sociais e para a existência de um feminino cujos atributos iam muito além da reprodução.

Os mistérios de Isis, de Demeter Thesmophoros, de Cybele, os cultos minoanos eram celebrados especialmente, senão exclusivamente por mulheres, mas o estudo destas “nuances” ficam relegados a domínios do ultra-especializado. Os curricula das universidades, para não falar dos níveis secundários e primário, restringem o estudo da Antiguidade aos gregos e sobretudo aos atenienses, cuja “democracia” se fundava na exclusão das mulheres da cena política.

Aliás, neste contexto, como se podem nomear “prostitutas” as hetairas, sem antes definir prostituição? Não seriam apenas mulheres livres do gineceu, que viviam fora dos padrões determinados para as mulheres casadas?  Da mesma forma, como se pode chamar de prostitutas as sacerdotisas sumerianas que realizavam o hierogamos (Stone, 1978:232-238), o enlace sagrado, ritual de celebração da vida?(James, 1989)

 De fato, a não problematização, a falta de questionamento do que é considerado “natural” leva a aberrações deste tipo, pois não foi codificado que as mulheres fora dos padrões mãe /esposa seriam consideradas prostitutas, não importa  sua condição ou atividade ?

O que gostaria de deixar claro é que os pressupostos interpretativos continuam a nortear a história e mesmo a história das mulheres, na medida em que repetem incansavelmente a existência binária de gêneros fundados em corpos sexuados. Judith Butler (1990) devia sofrer da mesma impaciência que a minha, quando afirma que são os gêneros que constroem o sexo, pois “não há gêneros fora de práticas de gênero”.

Numa perspectiva evolucionista e binária, que vê nas religiões antigas os indícios de um “matriarcado primitivo” domínio do caos anterior à civilização, à ordem, as condições de possibilidade da alta antiguidade, constitutivas da própria materialidade das relações sócio – sexuais são descartadas para a obscura região de um mito considerado ilusório, do improvável. Tudo se resume a “deusas-mãe”, deusas de fertilidade quando se trata de cultos e celebrações tão importantes quanto os mistérios de Isis ou Eleusis, os Haloa,( Patera  et Zografou, web, 2001)  os jogos de Eleusinia,  e os Thesmophoros,  em honra de  Demeter ( James (1989, Foucart, 1914); assim, em alguns parágrafos se resolvem séculos de celebrações à renovação dos ciclos agrários, sob a égide de um  feminino ciclicamente criador, reduzindo-o à “fertilidade” reprodutiva, domesticando, de fato, uma representação extremamente ameaçadora para a Ordem do Pai; as narrativas   passam assim rapidamente  para Zeus e seus asseclas, numa hierarquia de subordinação geral ao masculino.

O “matriarcado primitivo”, que, numa ótica evolucionista, seria o inverso do patriarcado, ou seja, as mulheres dominando homens, domínio do caos e da desordem, período pré-civilizado. Perspectiva que limita todos os horizontes possíveis, pois se não é patriarcado, é apenas sua inversão, justificando, de certa forma este sistema pela “evolução” histórica.

A civilização viria, obviamente, com a organização de Estados, patriarcais, que estabeleceria as “verdadeiras” religiões, a do deus-pai, abominados estes cultos pagãos de fêmeas.Vê-se claramente o quanto as narrativas históricas são permeadas e construídas pelas condições de imaginação de seus autores. Porque não seriam os governos feitos pelas/os anciãs/anciãos e não por divisão de sexo? Que sentidos compunham a idéia de feminino em épocas precisas? O pressuposto é a preeminência do masculino ( também sem significações específicas ao tempo/ espaço) em todas as esferas do social, ou seja, a importância dada a este sexo genital e simbólico, construto histórico que se tornou “natural”, universal, inquestionável   e porque não? divino, pois não foi criado “à imagem e semelhança”?

De toda forma, as narrativas históricas privilegiam os papéis exercidos pelos homens, em detrimento daqueles desempenhados pelas mulheres. O erudito Paul Foucart dedica dois capítulos aos hierofantes e apenas três páginas às sacerdotisas e às celebrações dos Thesmosphorios. Deixa, entretanto, algumas pistas a serem desenvolvidas no horizonte de uma história possível:

“Da Argólida, o culto de Demeter Thesmophoros espalhou-se por todas as partes do mundo helênico[...] Lá, como em toda parte alhures, parece ter tido o mesmo caráter: era reservada às mulheres iniciadas, com exclusão dos homens; [..] pela metade do segundo milênio, colonos ou fugitivos vindos do Egito se estabeleceram na Argólida[...] desenvolveram a civilização e espalharam o culto de Isis, sua divindade nacional. Sob o nome de Hera ou Demeter, os Pelasgos adoram nela a deusa da agricultura[..] Com o apoio destas tradições, os antigos tomavam a cronologia das sacerdotisas de Hera, os monumentos e templos que perpetuavam a lembrança destes acontecimentos (1914:39)

Afirma ainda que “ A introdução da agricultura e a do culto de Demeter são dois fatos inseparáveis, tendo uma realidade histórica, da qual a tradição conserva a lembrança, envolvendo-a na fábula das caminhadas errantes da deusa em busca de sua filha”(1914:40) Atribuindo-se tal feito – o uso dos cereais- a uma deusa, que representação do feminino haveria nesta época? O que significava “ser mulher” nestes espaços e temporalidades diversas, onde os sentidos atribuídos ao feminino compunham igualmente a divindade  ?

Nas listas das dinastias e realezas, quantos nomes de mulheres não foram apagados ou traduzidos no masculino? Porque a simbologia e a religião encabeçadas por deusas criadores perderam sua pregnância no social? O fato é que os aspectos simbólicos dos cultos às deusas são extremamente perigosos para a ordem androcêntrica, que funciona com a violência / opressão, mas também com o convencimento, com o assujeitamento das mulheres à sua condição biológica inferiorizada.

A história da Alta Antiguidade vem despertando uma renovação de interesse, principalmente entre as acadêmicas feministas. Um sopro de ar, que pode varrer os silêncios e exclusões na história e criar uma nova memória social. De toda forma, o que importa são os questionamentos e as destruições das evidencias, em direção a um horizonte possível do humano.

Bem perto de nós, no Brasil

 Em uma ótica feminista, a leitura das fontes pretende destacar a  construção do feminino no olhar dos cronistas ou viajantes, ou literatos, no caso da história do Brasil colonial, segundo suas próprias representações e imagens da divisão social e natural dos sexos. Marcas, geradas às vezes pelo espanto, são registradas e nos deixam entrever nas sociedades indígenas relacionamentos sociais múltiplos, que não se orientam pelo sexo biológico nem pelo exercício da sexualidade.

 Nesta perspectiva, a história  tem sido feita de  retalhos, aos quais se atribui uma importância generalizante: é assim que histórias recortam o humano em “ política”, “social”, “ demográfica”, “cultural”, “ econômica”, cada qual reivindicando para si a totalidade do humano.

 Diz-se “ no século XVI ou XVII”, como se houvesse uma entidade homogênea, encobrindo esta abstração que é um século; diz-se “período colonial” ou “império”, como se apenas uma mudança na forma de governo fosse espelho de uma pretensa transformação da realidade total, de uma materialidade explícita e evidente. As narrativas históricas, de fato, imprimem um sentido e uma coerência ao caótico movimento do real, afastando, no mesmo movimento, a construção que a ordena.

Não estou falando apenas dos positivismos, mas da história que se faz sobre o já-dito, sobre a autoridade de uma historiografia que  erige em verdade seus enredos imaginados. A ficção histórica, assim, re-constrói mundos e relações onde os papéis são imutáveis e os gêneros definidos pela biologia.

 Isto não significa, como querem alguns,  redução da realidade ao discurso, mas apenas a constatação que os indícios- impressos ou imagéticos - do real são incontornavelmente textuais, apesar de suas linguagens específicas. . Estes  indícios  são também interpretações e esta decodificação, que constrói uma realidade a ser narrada,  se faz a partir de um lugar de sujeito,  de uma perspectiva de gênero.

A política de localização, já consagrada no fazer da ciência, que  inclui a subjetividade na própria construção do objeto, não contempla , porém, as posições generizadas, que instituem  o real em sua percepção e narração,  a partir  de um lugar instituído no social, enquanto feminino ou masculino. Não porque este lugar seja “natural”, ou expresse uma natureza qualquer ligada ao biológico, mas porque,  mulheres e homens  somos construídos em representações e modelos no social e assim adquirimos  formas de percepção e de ação específicas, que instituem nossa materialidade em corpos femininos ou masculinos.

O que conduziria a esta divisão sexuada do humano seria a “ diferença”, que, entretanto, é ela mesma,  uma categoria , construto social e político; baseia-se na importância que se dá ao  biológico e seu corolário de características “ naturais”, quer se trate de gênero ou de raça.  Esta constatação ,porém, não apaga os contornos e  limites desta pretensa diferença, pois percebê-la não significa eliminá-la..

Neste sentido, a diferença aparece como base justificativa para a divisão sexual de papéis e tarefas. Entretanto, aquilo que é mostrado como causa – a diferença biológica – é, de fato,  conseqüência do agenciamento social e político, da importância que se dá ao genital para a definição do humano, da procriação como determinante da sexualidade das mulheres, da apropriação e troca dos corpos femininos, em nome desta especificidade e desta diferença..

 De fato, o estabelecimento da  diferença é a criação e afirmação de um referente, que estabelece seu oposto e como tal o considera. No caso de uma sociedade patriarcal a “diferença” é instituída a partir do masculino universal, daquele que define o humano em geral e a seguir suas especificidades, seus “ diferentes”. Não é, portanto, a diferença, biológica ou outra que ancora a desigualdade, mas a imposição política de um referente que se erige em parâmetro e norma.

No âmbito da sexualidade é o desejo dos homens, é a presença dos homens, é a sexualidade masculina que aparecem como reguladores da ordem, como definidores da moral, como parâmetros de inserção no contrato social / sexual que se estabelece na colonização portuguesa.. A desigualdade surge aqui com o estabelecimento da “diferença” e de uma exclusão. Assim, aquilo que é tomado como causa da exclusão do político-social – a diferença biológica – não é senão o fruto da instauração de uma desigualdade forjada no político.  A prática de ensino jesuítica nas escolas para meninos, por exemplo, de fato cria uma nova divisão entre os sexos, uma nova moral, um novo eixo de saberes, destinados exclusivamente ao sexo masculino, interlocutor escolhido pelos portugueses em seu contato com os indígenas.

No confronto de fontes e da produção historiográfica, pode-se  observar o obscurecimento da presença e ação das mulheres no Brasil colônia, numa percepção que instituem sentidos binários e hierárquicos às organizações sociais indígenas e coloniais, instaurando cânones morais e assim criando gêneros, nos moldes eurocêntricos.

Lá onde havia liberdade, viu-se lascívia ou submissão; lá onde havia desejo, viu-se dominação. De fato, se as fontes contemporâneas ao descobrimento deixaram-nos indícios múltiplos, estes foram muitas vezes ignorados ou transformados de acordo com os pressupostos teóricos ou representacionais d@s historiadoras/ es. Isto significa que a narrativa histórica se caracteriza pela imposição de  sentidos, pois distribui e opera significações que aprisionam a multiplicidade do humano em redes de formas modelares e/ou essenciais.. O humano é tratado como sendo um todo unívoco e também  inequívoco: a biologia define as competências e os saberes, os papéis e os poderes, a expressão e a definição da sexualidade, em termos de normalidade e exclusão.

Desta forma, o enquadramento das sociedades indígenas em um modelo binário e hierárquico da relação entre os sexos apaga os indícios da pluralidade no social. Ou seja, os eixos de coesão social nem sempre estão fixados no sexo, na sexualidade ou na dominação de uns pelos outros, mas esta diversidade é apagada na política discursiva do silenciamento, modo de significação constitutivo de uma realidade que se apresenta como verdadeira e os costumes indígenas são soletrados no  masculino

É assim que os caciques são apresentados como os chefes das tribos, o que , de fato, contradiz os indícios deixados pelos cronistas.

 Os caciques, com os quais os portugueses começam a tratar e a elevar em hierarquia, eram, de acordo com os cronistas, apenas organizadores da guerra ritual e sua autoridade não era nem definitiva nem obrigatória..São numerosos os cronistas a indicar que os indígenas não tinham “ nem fé, nem lei, nem rei” e apontam para a autoridade espiritual como a mais forte e importante.  E as mulheres também eram pajés, como indicam os  mesmos cronistas. Hans Staden descreve cerimônias de predição do futuro a partir de sonhos e visões, feita apenas por mulheres, de excepcional importância na cultura indígena. ( Staden, 1942:175)

Os caciques não “davam” as suas mulheres – que não eram sua propriedade. Ao contrário, era o prestígio na guerra que atraía mulheres a um homem ou a uma mulher-em-homem ( o biológico não definia necessariamente os papéis e relações sociais, como veremos). De fato, ele não as possuía, elas o escolhiam, de forma  temporária ou permanente. Staden comenta que algumas índias “ tinham um marido em comum [...] (Staden ,1942 : 171) , perspectiva interessante , pois aponta exatamente para a escolha de um guerreiro valente e não para a posse de mulheres como tributo de guerra. Quando as índias se relacionavam com os brancos, isto era feito por sua própria vontade, não eram trocadas ou doadas – os cronistas enfatizam a liberdade sexual das índias e esta, para eles, é motivo de estranhamento maior.

Para Capistrano de Abreu, historiador do século XX, porém, esta liberdade é vista como a irresistível atração do inferior pelo superior, acoplada do comércio “natural” de seus corpos:  "Da parte das índias, a mestiçagem se explica pela ambição de terem filhos pertencentes à raça superior [...] Além disso, pouca resistência deviam encontrar os milionários que possuíam preciosidades fabulosas como anzóis, pentes, facas, tesouras ". (Abreu, 1982:61)

 “Pouca resistência” supõe uma pressão indevida e nos faz pensar no aforismo contemporâneo, segundo o qual “ quando uma mulher diz não, ela quer dizer sim”, justificador de todas as violências sexuais – e no caso, sobretudo, com a possibilidade de um pagamento qualquer. Seriam as índias “ naturalmente” propensas à venda de seus corpos? Nada parece mais absurdo. Entretanto, frases como esta reiteram a força de um imaginário social em que os corpos das mulheres são bens apropriáveis.

Da mesma forma, Buarque de Holanda, após enumerar a destribalização, as doenças, a fome, o trabalho forçado de toda espécie, como sorvedouros de seres humanos ... esquece de mencionar a violência sexual e afirma que “ Não obstante, foi no intercâmbio assim estabelecido entre os nativos e os portugueses que surgiu uma população mestiça, capaz de dar maior plasticidade ao sistema social em formação e de contribuir para a preservação de elementos culturais herdados dos indígenas. (Buarque de Holanda, 1976:85) O estupro, aliás, é o grande ausente dos tratados e compêndios, manuais de história do Brasil, ao louvar a mestiçagem, tanto no que diz respeito às escravas negras, quanto às índias. Tudo se passa como se as mulheres só estivessem à espera dos favores e da honra que lhes concediam seus senhores ou colonos ou bandeirantes, ao violentá-las.

Tudo se passa também em uma espécie de euforia lasciva, onde a violência está ausente e a sexualidade é a celebração de uma enorme festa em prol da mestiçagem. Qual a escrava, porém, que não foi violentada várias vezes ao longo de sua vida? Sem falar das “ negras de ganho”, prostituídas numa cafetinagem generalizada e normalizada? No que diz respeito às índias, a imagem da prostituta reaparece: Gilberto Freyre comenta que elas se ofereciam para os brancos e  as mais ardentes se esfregavam nas pernas daqueles que “suponham ser deuses” . (Freyre, 1974:98)

Os sentidos expressos assim nos apresentam uma história asseptizada, des-generizada, sem nenhuma violência de gênero, na qual as mulheres aparecem apenas em seus limites estereotipados de mães, prostitutas ou feiticeiras.

Desta forma, um olhar crítico feminista percebe, no relato histórico, “evidências” generalizantes, que supõem uma “ natureza” biológica dos gêneros, uma definição de corpos sexuados e um exercício da sexualidade padronizados, nos moldes das representações sociais do enunciador. Exemplo disto é o primeiro volume da Historia Geral da Civilização Brasileira, um clássico da historiografia sobre o período colonial. A narrativa histórica aí  é reduzida a um amplo masculino, o “homem” universal, cuja superioridade política ou criativa se torna indiscutível. A ausência de mulheres no início da colonização é reafirmada com insistência, apesar dos relatos que apontam para o contrário.

No que se refere às fontes, uma leitura de alguns cronistas como Thévet, Abeville, Hans Staden, Gabriel Soares de Souza, Cardim  e sobretudo de  Gandavo ilustra a quantidade de indícios por eles apontados  da multiplicidade do real, de um agenciamento social que desapareceu das escolas e do ensino,  silenciados pela historiografia tradicional, ou por ela transformados.

Gandavo e outros cronistas mostram uma sociedade indígena complexa, em tons que variam do espanto à repulsa ou ao deslumbramento  e buscam captar sua ordem  a partir de seus próprios parâmetros.      São eles, entretanto, pródigos em detalhes sobre a produção, a vida quotidiana, as festas, as artes, as predominâncias, as divisões de trabalho e as condições de sobrevivência.

Gandavo explica a liberdade no relacionamento entre mulheres e homens e sobretudo comenta, com espanto, a possibilidade entre os indígenas, de escolher seu sexo social, independente do biológico:

“ algumas índias desta parte que juram e prometem castidade e assim não conhecem homem de nenhuma qualidade e nem não consentirão ainda que por isto as matem.. Elas deixam todo o exercício das mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem mulheres e cortam seus cabelos da mesma maneira que os machos trazem e  e vão a guerra com seus arcos e flechas e à caça e assim andão sempre em companhia dos homens e cada uma tem uma mulher que as serve e que lhe faz de comer como se fossem casadas.” (Gandavo,ed. 1965:215)

Estas observações são indícios de grande importância na quebra do unívoco e do binário, baseado no biológico, na quebra também da noção de uma heterossexualidade obrigatória e «  natural », Por um lado, Gandavo relata seu espanto diante do que vê e por outro, interpreta ao expor seus valores : na relação entre mulheres não há sexo, pois são « castas », já que não tem « comércio com os homens » . Mas não pode deixar de acrescentar que são «  casadas » e tem relações « como marido e mulher », ou seja, expõe uma sexualidade  que não lhe é estranha, mas para a qual não tem palavras para descrever fora de suas condições de imaginação. Além disto, elas “imitam” os homens, o que ainda hoje se enuncia a respeito  das lesbianas, “simulacros” do masculino.

A diversidade do social aparece aqui como um dos indícios a ser tratado pelas/os historiadoras/es – silenciada, entretanto, a partir da implantação da diferença entre mulheres e homens, a partir da criação e narração  da realidade indígena em esquemas binários de divisão sexual de autoridade, importância e de poder.

De fato, o que a história aqui criou foi uma outra sociedade indígena reproduzindo, em suas narrativas, o biológico apropriado em uma natureza binária e essencializada, onde o universal era o masculino e o específico, o feminino, máquina reprodutora ou sexo a ser tomado, dominado, utilizado.

Vemos aqui, entretanto, uma sociedade onde o gênero não está ligado ao sexo biológico, ao contrário, confirma a hipótese de Judith Butler , que não existe sexo fora de práticas de gênero e desta forma é o gênero que define o sexo biológico e modela, assim, os corpos instituídos em mulheres e homens.

Ainda segundo as observações de Gandavo, e no que diz respeito às atividades produtivas, as mulheres dirigiam a economia das sociedades por ele contempladas: plantavam, colhiam, tratavam a produção; além disto, eram pajés, curandeiras, artistas, hábeis ceramistas, cantoras, sabiam nadar, pescar, remar.  Cardim observa que as mulheres “ arremedam pássaros, cobras e outros animais, tudo trovado, por comparação, para se incitarem a pelejar. Estas trovas fazem de repente e as mulheres são insignes trovadoras..” (Cardim,1978:185) “ ... as mulheres nadam e remam como os homens.. e por serem grandes nadadoras não temem água nem onda nem mares” ( idem:188)

 Livres de sua sexualidade, podiam casar e trocar de parceiros, liberar prisioneiros, se assim o desejassem, como afirma  Cardim (1978:114). Entretanto, ressemantizados  pela historiografia, os costumes indígenas aparecem de forma diversa : “ [...] algum principal, contando com número suficiente  de mulheres, em seu lar polígino ( filhas, sobrinhas, agregados) cedia-as em casamento a jovens que se dispunham a aceitar sua autoridade.” (Florestan Fernandes,HGCB: 75)

Com mais idade, o prestígio das mulheres se torna maior, como aponta Gandavo (1965:58) “ Todos seguem muito o conselho das velhas, tudo o que elas lhe dizem fazem e tem por muito certo. Daí vem que muitos moradores não compram nenhuma velha, para que não levem seus escravos a fugir.”  (Gandavo, ed.1965:217). Thévet (1944:218-219) sublinha o conhecimento e a magia das “ velhas feiticeiras”.A idade parece ser um fator de grande importância em termos de respeito e autoridade na tribo e isto independente do sexo biológico. As mulheres decidiam sobre os casamentos, recebiam o fruto das caçadas e pescarias, acolhiam e se ocupavam dos prisioneiros de guerra, até o momento de seu sacrifício. De toda forma, como explicitam os cronistas, a autoridade dos caciques era  nominal e funcionava apenas na organização da guerra ritual.

Mas afirma ainda Fernandes, vestido em suas certezas ?:

“ É claro que a proteção das mulheres, crianças e velhos era atividade masculina  bem como a realização de expedições guerreiras [...]” e prossegue “ As atividades xamanísticas também constituíam prerrogativas masculinas, embora existam referências esporádicas à participação das mulheres nestas atividades, bem como nas guerreiras ( na qualidade de combatentes, nos casos de mulheres tríbades”) (Fernandes,HGCB 75-76) 

Não importa, portanto, as indicações dos cronistas que os pajés poderiam ser também AS pajés: como os classifica – esparsos - não atrapalhariam seu modelo de mundo. O “ é claro”, do início da frase nos coloca de imediato numa comunidade discursiva cujos pressupostos são evidentes.  O termo “ tríbade”, utilizado para designar uma anomalia do sexo feminino – o clitóris aumentado – carrega também o sentido de homossexualidade, de uma patologização biológica-social dos costumes indígenas.    

 Quase todos os cronistas comentam a existência de mulheres guerreiras e a própria administração colonial, como aponta Buarque de Holanda, preocupa-se em localizá-las Afirma este autor: “ No Quito, a Real Academia apura a existência, em certas províncias, dessas viragos, capazes de sustentar-se sem o convívio dos homens, salvo em determinadas ocasiões” ( B.Holanda, 25)  Virago, de viril, pejorativo para mulheres, masculinizadas. Impossibilidade , portanto, para este autor, de admitir a diversidade de papeis sociais, senão classificando-os de acordo com seus estereótipos

 As guerreiras Aymorés desaparecem e surgem amazonas lendárias, histórias que Buarque de Holanda relega ao mito, pois as condições de imaginação não concebem mulheres fora de um esquema binário dominador/ dominado, masculino ativo e forte, feminino passivo e frágil. Os depoimentos dos próprios indígenas sobre estas mulheres guerreiras, relatados pelos cronistas, os testemunhos de Carvajal e de Orellana  ultrapassam o mundo representacional do historiador: para ele, são figuras míticas. O que chamo de condições de imaginação são as possibilidades de colocar em questão valores estabelecidos; é evidente que historiadores de 1976 não as possuem, quando afirmam que

“ [...] ao se defrontar com grupos indígenas com que combatera, na altura do Nhamundá, imaginando-os mulheres, dera ao rio, cuja calha central estava percorrendo, o nome de rio das amazonas[...] ( Ferreira Reis, HGCB:257)

Gandavo e Soares de Souza afirmam que os homens não poderiam, materialmente,  viver sem as mulheres e suas explicações sobre a atividade guerreira permite-nos pensar na guerra como um rito de passagem para a inserção dos homens na organização social da tribo, pois apenas um prisioneiro assegurava-lhe a possibilidade de entrar no mundo das mulheres, o mundo da vida social da tribo.

 Entretanto, para Fernandes : “ como acontecia com os serviços e os cativos, as mulheres circulavam entre as parentelas como se fossem bens” (79)  A “ troca de mulheres” é uma aplicação direta da teoria de Lévy-Strauss sobre a troca de mulheres como forma de estabelecimento da sociabilidade entre os grupos sociais; isto significa impor um sentido pré-estabelecido às relações existentes entre os indivíduos, os grupos locais e as relações inter-tribais, cujo pressuposto primário é de que os homens possuem as mulheres, “naturalmente”.

Este é um exemplo  modelar de como a realidade é construída para abrigar a teoria e seus pressupostos. Encontramos aí diversos pressupostos e graus de naturalização:

. a relação binária e heterossexual organizadora da sociedade indígena

. a posse coletiva das mulheres pelos homens, que as cedem, trocam, vendem, emprestam, como pressuposto evidente;

. a patologização da diversidade de práticas e in-corporações de sexo, sexualidade e papéis sociais;

. a inversão da importância do trabalho realizado segundo o sexo: o domínio do mundo do trabalho pelas  mulheres, é transformado em uma espécie de trabalho escravo apenas a partir de sua condição feminina. Ou seja, a feminização do trabalho, nas condições de imaginação do cientista social tornam-se automaticamente um trabalho subalterno e dominado. O que seria dito de uma sociedade onde os homens detivessem os meios de produção e assegurassem a vida e a inserção social das mulheres? Seria naturalmente classificada como patriarcal, como dominada pelos masculino.

Este modelo é tão ancorado nas representações de mundo e nas condições de sua apreensão pelo historiador, que mesmo sendo as mulheres as responsáveis pela manutenção econômico-social da tribo, a sociedade continua a ser patriarcal. Podemos perceber que a subjetividade generizada do analista se derrama sobre sua narrativa, impondo sentidos aos indícios discursivos que nos aproximam da realidade, segundo suas próprias condições de imaginação.

O papel da historiadora e do historiador , em meu entender, não é afirmar tradições, corroborar certezas, expor evidencias. É ao contrário, destruí-las para reviver o frescor da multiplicidade, a pluralidade do real.

É criar a inquietação, a interpelação, é suscitar a mudança, é levantar questões e pesquisar incansavelmente a diversidade, para escapar à tirania do unívoco, do homogêneo, da monótona repetição do mesmo, que nos faz reiterar uma história sem fim de dominação e exclusão entre feminino e masculino. As próprias noções de sexo biológico, de gênero social, de diferença, enquanto sistema não passam de uma reafirmação constante da primazia do biológico como divisor de um humano desenhado em dois, cuja complementaridade “natural” é a naturalização do destino biológico das mulheres na reprodução.  Da diferença extraímos a diversidade, do estranhamento, a poética da existência, que não é senão a pluralidade do humano, a possibilidade de ser sem as contingências das normas e nos modelos. Afinal, como disse Foucault, “ tudo que foi construído, pode ser desconstruído”

Cronistas:                       

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1 este artigo também foi publicado em livro, organizado por Margaareth Rago