Você disse imaginário?

   On veut  toujours que l’imagination soit la faculté de former des images.

Or, elle est plutôt la faculté de déformer les images fournies par la perception[…]

                                                                                                                             Bachelard

A  noção de kairos em Jung (Jung, s/d: $398-585) remete ao conceito de “momento propício”, conjunção favorável de fatores que faz eclodir, ou que permite a eclosão simultânea de idéias, categorias, descobertas, independente de deterninações de espaço físico ou lateralidades.

A percepção do imaginário como locus de investigação cien­tífica obedece, de certa forma, à experiência do kairos, na medida cm que, realidade inerente ao movimento social, condensa as cx­pectativas e os anseios de um aprofundamento na compreensão da realidade empírica, presa ao molde de esquemas unívocos de in­terpretaçào, sacrossantos escrínios de categorias detinitivas ou modelos intocáveis.

Nada, além de um consenso acadêmico/filosdfico,  força-nos a considerar como real apenas a dimensão do concreto; a percepção cognitiva e seus resultados reflexivos ou formadores, a questão epistemológica, enfim, perpassa o discurso filosófico desde a en­tronizaçâo do  logos em contraponto ao sermo mythicus, percor­rendo instâncias platônicas, empiristas, materialistas, idealistas, ad nauseam. Além da relação sujeito/ objeto, outros binômios polarizantes atravessaram a filosofia e as ciéncias sociais: indivíduo/sociedade, natureza/ cultura, sujeito/estrutura, que ora aparecerão num diálogo organizante/organizado, ora surgirão camo elementos determinantes ou determinados  “em última instância”.

A dualidade, entretanto, que intervém de forma categórica na busca epistemológica, é a distinção que se procura estabelecer entre o real, por um lado,  e o ilusório ou imaginário, por outro, com seus corolários  material/ imaterial, concreto/abstrato.

O imperialismo da racionalidade, porém, o conjunto de cren­ças instituídas enquanto “verdades”, o autoritarismo da academia que determina os temas e objetos dignos de serem trabalha­dos/pesquisados, num direcionanento claramente ideológico, bloquearam durante muito tempo a diversificação e o aprofunda­mento das análises em ciências sociais, estabelecendo-se o que era sério e científico, e excluindo-se assim automatica­mente todas as outras abordagens.

 Foucault afirma que seus trabalhos sobre a psiquiatria e a clínica só começaram a ser considerados aeademicamente por volta de 1968, momento de grandes transformações político-intelectuais na França; até lá, esta questão “[...]não interessou em absoluto àqueles para quem eu a colocava. Consideraram que era um problema politicamente sem importância e epistemologicamente sem nobreza. (Foucault,1979: 2-3)

Entretanto, o século XX vê aos poucos a questão da realidade ser trans­formada ou deslocada: nào mais se visa encontrar o âmago do real, a essência da natureza. Compreende-se a realidade em diferentes níveis de concretude, em dimensões diversas não excludentes, ao contrário, constitutivas do real como um todo, cm gradações não-hierarquizadas.

As fronteiras entre o material e o imaterial tornam-se mais tê­nues, na medida cm que avança a física de partículas: o “princípio de incerteza” de Heisenberg, a realidade invisível e paradoxal dos quarks, substrato último constitutivo da matéria, ilustra hem o potencial de saber a ser objetivado no mergulho através e além do concreto e do material.(Detoeuf, 1986)

Por outro lado, a noção de “inconsciente” em ciências sociais, trazida pela psicanálise freudiana, incita a um aprofundamento na análise das formações sociais, abrindo à pesquisa novas dimen­sões do ser, desembaraçada dos liames metafísicos, materialistas ou racionais, enquanto caminhos de verdade. De fato, a crítica nietzschiana da “vontade de verdade” , revelando a “vontade de poder”, dissimulada nos traçados unívocos do conhecimento, re­força o desejo de desvelar escaninhos ocultos ou silenciados pelas histórias tradicionais.

 Foucault  explicita que

“[...]se colocamos a questão de saber qual foi, qual é cons­tantemente, através de nossos discursos, esta vontade de verdade que atravessou tantos séculos de nossa história, ou qual, é em sua forma mais geral, nossa vontade de saber, então, talvez, é alguma coisa como um sistema de exclusão (sistema histórico, modificável, institucionalmente obrigatório) que vemos se desenhar.” (Foucault, 1971: 16)

Neste sentido, a análise dos micropoderes, anunciada por Foucault, desvenda a imensa força das representações e das ima­gens na construção dos papéis e do intercâmbio social, na naturalização de situações/relações que, de outro modo, nâo seriam se­quer questionadas.

Temos assim, nâo só um aprofundamento do território a ser investigado, mas igualmente uma verdadeira explosão do campo de objetos de estudo e de pesquisa. Na verdade, a vida social produz, além de bens rnateriais, bens simbólicos e imateriais, um conjunto de representações, cujo domínio é a comunicação, ex­pressa em diferentes tipos de linguagem, discursos que se mate­rializam cm textos imagéticos, iconográficos, impressos, orais, gestuais etc.

A linguística de Saussure e a antropologia de Lévi-Strauss trouxeram-nos a noção do arbitrário das significações e dos valores, auxiliando a desconstrução das noções de “natural” e de “es­sência”, ligadas ao realismo e ao positivismo, noções aliadas de todos os etnocentrismos e sexismos. A passagem, entretanto, do estudo da linguagem formal — conjunto de normas e regras fixas e imutáveis — para o discurso constituído de enunciados socialmente construídos — permitiu a elaboração do que se convencionou chamar “anâlise do discurso”, um quadro teórico-metodológi­co que contempla as formações discursivas/sociais em suas con­dições de possibilïdade e de produção, atingindo todas suas di­mensões constitutivas.

O discurso, segundo Bakthin, é produto de uma interação verbal/social onde

“[...] a situação e os participantes mais imediatos determi­nam a forma e o estilo ocasionais da enunciaçâo. Os estratos mais profundos são determinados pelas pres­sões sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor.” (Bakhtin , 1990: 114)

O imaginário, cm nosso entender, ocupa uma parte conside­rável dessas “pressões sociais”, revitalizando, ressemantizando conteúdos, imagens, galvanizando pulsões e emoções coletivas, no processo enunciativo das formações discursivas.

Segundo o mcsmo autor:

“Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradá­veis etc. A palavra está sempre carregada de um con­teúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.( Bakhtin, 1990 :95)”

Assim, se de fato entendemos o discurso e suas enunciações como produto de um diálogo em seu sentido mais amplo, “[...] não apenas como a comunicação em voz alta de pessoas colocadas fa­ce a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que se­ja” ( Bakthin, 1990 :123) sua materialização em textos atualiza, produz, cria, retoma, faz circular sentidos dentro de uma  rede específica de significações topológicas .

Os aspectos conotativos e paradigmáticos, emergentes simbolicamente, atravessam o campo sêmico, o horizonte possível de sentidos, interpelando a memória coletiva, o já-dito, a exteriori­dade, que, finalmente, constitui o domínio des relações discursi­ves, estabelecidas, segundo esclarece Foucault

“[...] entre instituições, processos econômicos, formas de comportamento, sistemas de normas técnicas, tipos de classifïcação, modos decaracterização.” (Foucault , 1987: 51)

Deste modo, o texto é remetido  ao interdiscurso, ao “outro” constitutivo, o que fez com que sentidos novos, adquiridos cm situações particulares, façam brilhar, em suas filigranas, traços de enunciados anteriores. As redes de sentido, portanto, que com­põem o peso específico des imagens e conceitos veiculados pelo discurso, comunicam-se, na diacronia, com outras constelações de sentidos, fazendo com que as Ieituras sejam, finalmente, releituras dos textos possíveis.

Entretanto, os sentidos, ao se condensarem em uma formação discursiva, produzem efeitos diversos, que compõem um mosaico de autoridades, primazias, bierarquias e exclusões, cristalizando-­se cm instituições/verdades, formulando relações de poder/força. A quebra da polissemia inerente  a todo texto, a toda enunciação, restaura a univocidade da norma e a norma nâo cessa de fazer apelo ao inconsciente/memória coletiva, e à tradição, para insti­tuir a naturallzaçâo dos sentidos dadas.

O discurso religioso, par exemplo, seja ele islârnico, cristão, judaico, invoca a autoridade divina/instituída e a tradição normativa para a naturalização do posicionamento social dos gêneros cm termos de hierarquia: superior/inferior, principal/secundário.

Ora, o imaginário que aflora nos mais diferentes tipos de dis­cursos é um forjador de sentidos, de identidades, de (in)coerên­cias. Segundo Bronislaw Baczko (1985: 306) não se pode separar os agentes/atos de suas representaçâes/imagens de si e do outro, que, de fato, definem comportamentos, inculcam va;ores, atri­buem méritos, corroboram ou condenam atitudes/decisões.

. nas trilhas do imaginário: teorias e perspectivas

     Os estudos sobre o imaginário  atravessam o século XX: a partir dos anos 30,  trabalhos como  os de George Dumézil, cujas últimas publicações datam dos anos 80 [1] e  de Bachelard,[2] que esculpe a noção de imaginação criadora, tornam-se  referência quase obrigatória   nas rellexõe sobre o imaginário. Da mesma forma, Roger Caillois, que participou do movimento surrealista, reflete sobre as a arte em geral, a literatura, o religioso, em uma extensa obra, utilizando, já, à época, a noção de imaginário .[3] No fim dos anos 60, Gilbert Durand cria o " Centre d' Études sur l' ïmaginaire", em Grenoble, França,que realiza uma imensa produção de teses e pesquisas interdisciplinares sobre o imaginário, atualmente dirigido por Michel Maffesoli.

Por outro lado, historiadores como George Duby e Jacques LeGoff , nos anos 70, produzem trabalhos que põem em relêvo a categoria imaginário , porém com acepções diversas: Duby em seu livro," As três Ordens ou o imaginário do feudalismo"  ( Duby, 1982) toma como exemplo o trifuncionalismo de Dumézil  e LeGoff , com seu " O imaginário medieval ", ou "o Nascimento do Purgatório" (Le Goff, 1985 e 1981 ) apresenta esta noção numa perspectiva de reflexo do real, ou seja, o imaginário seria uma exlusiva produção do real, observado na longa duração.

Os anos 80 assistem a uma produção cada vez maior de trabalhos que gravitam em torno do conceito de imaginário, como "A colonização do imaginário", de Serge Gruzinsky (1988) ou "A guilhotina ou o imaginário do terror,"de  Daniel Arasse (1987). Isto sem falar do estudo dos mitos desenvolvido por Jean Pierre Vernant (1987) e Marecel Détienne ( 1981) etc, com suas óticas específicas. No Brasil , Laura de Mello e Souza e outros, por exemplo, trabalham igualmente imagens, que podem ser iconográficas ou criações mentais com força de imagem.

Mais recentemente, Peter Burke (1994) analisa a criação da imagem de Luis XIV, como oriunda de uma ação consciente de um certo grupo difusor que, através das imagens do rei assentam e constróem a dimensão de seu poder. Este autor afirmou, em recente conferência, [4] que a designação de  Imaginário tendia apenas a substituir a de mentalidade, e isto é evidente em muitos historiadores. Entretanto, se a mentalidade contempla a transformação de atitudes mentais na longa duração, o estudo do imaginário compreende a transformação, sim, porém em sua atualização histórica e sobretudo seu dinamismo na construção do real, no agenciamento das relações sociais que definem hierarquias e modelos.. 

A ação dinâmica do imaginário aproxima este conceito da noção de Representação Social de Moscovici para quem a representação social é estímulo,  variável independente nas investigações empíricas.(in Jovchelovitch e.Pedrinho Guareschi , 1974: 175) Jodelet , ainda no campo da psicologia social, trabalha com um conceito de Representação social que o identifica com uma  forma de conhecimento, elaborada e partilhada no social , atuando para  a construção de uma realidade comum a um conjunto social"(Jodelet,1989 )

 Roger Chartier, discutindo as representaões sociais no âmbito da história cultural, dissocia-as dos processos psicológicos individuais ou de ordem partilhada e  indica que seriam esquemas interpretativos,aquilo que "à revelia dos atores sociais traduzem suas posições e interesses objetivamente confrontados e que paralelamente,descrevem e modelam a sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse.(Chartier, 1990:19)

Nesta rápida confrontação, vemos uma noção de representação que  se confunde e se imbrica  com a de imaginário, na medida em que este constrói ou reproduz o real segundo as confrontações, as divisões, as clivagens que se manifestam na formulação de imgens estabelecedoras de um social específico.

Quanto a métodos, objetos e fontes,o estudo do imaginário revela-se definitivamente interdisciplinar, no cruzamento da antropologia, da história, da linguística, da psicanálise, da psiclogia social, da sociologia , etc. Se o seu domínio principal é a iconografia, a produção e atuação das imagens nas formações sociais, não podemos excluir do estudo do imaginário a produção de imagens no discurso. Neste sentido, a imagem é texto,  e o texto , a materialização do discurso. Valores são assim articulados nas práticas discursivas e neste sentido, Bakthin afirma que "[..] na realidade não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis e desagradáveis. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial."(Bakthin, 1990:95)

De fato, o  imaginário trabalha um horizonte psíquico habitado par re­presentações e imagens canalizadoras de afetos, desejos, emo­ções, esperanças, emulações; o próprio tecido social é urdido pela imaginário — suas cores, matizes, desenhos reproduzem a trama do fio que os engendrou. O imaginário seria condição de possibi­lidade da realidade instituída, solo sobre o qual se instaura e ins­trumento de sua transformação.

Sentidos são assim compostos//decompostos na dimensão do imaginário migrando através de formaçôes discursivas homogêneas e/ou hete­rogêneas, criando imagens saturadas de paixões/rejeições, que de­finem perfis/tipos/papéis sociais. Vejamos, por exemplo, a cons­trução da imagem da mulher pérfida, histérica — definida pela se­xualidade e pelo vício, bruxa ligada às forças subterrâneas, necessitando ser domesticada, domada, exorcizada, - veiculada  entre os séculos XIV e XVIII, no Ocidente, e magistralmente traçada por Jean Delumeau (1978).

A queima de milhares de “bruxas”, a partir do século XV, de­monstrou a galvanização das paixões cm torno desta imagem de mulher, infratora de todas/algumas normas, inversão ou transgres­são de paradigmas instituídos. Os séculos XVII e XVIII sâo inesgotáveis na produção iconográfica sobre a bruxaria: Goya, Picart, Ziarnko, Callot, Teniers, Van der Velde ilustram práticas de magia em gravuras e pinturas, as relações entre as bruxas e o demônio, fixam na imagética a vassoura, a feiúra, a desordem, as trevas ligadas à imagem da bru­xa e do sabá.

Ilustrando a poderosa força de instauração social derivada do imaginário, Delumeau mostra também a criaçâo da imagem do ju­deu como o “diferente:  — o excluído por excelência, ligado ao mal e ao tenebroso — dando espaço à perseguições seculares.

Na medida cm que estabelece estereótipos e paradigmas, ab­sorvidos e normatizados socialmente cm níveis básicos, como o status sexual dos indivéduos, o perfil da ordem familiar, a atribui­ção de deveres/direitos inerentes a uma suposta “natureza” dos se­res, bem como a divisão do trabalhio social, o imaginário, através das mais diferentes linguagens, atua como um vigoroso caudal que atravessa obliquamente as formaçôes sociais, penetrando to­dos seus meandros, em todos os níveis, todas as classes sociais-interclasse-modelando conjuntos/pacotes de relações sociais hegemônicas, cuja duração compreende maior ou menor lapso de tempo.

A educação das crianças espelha com nitidez o movimento deste imaginário instituinte, na precoce definição dos gêneros, em que brinquedos e atitudes são revestidos de todo um simbolismo dualístico, anunciando os papéis futuros, feminino/masculino.

Assim, na trama do social, criam-se as noções de “evidente”, “natural”, “universal”, bloqueando inclusive a possibilidade de se pensar o heterogêneo; neste caso, uma formação social onde os papéis são outros- e não apenas invertidos ou diferentes (em re­lação a um modelo) - é inconcebível, impossível na ordem do discurso, inclusive acadêmico. O “outro:  só pode ser percebido enquanto cópia imperfeita, no domínio da identidade coletiva. O beterogêneo é relegado ao imaginário – fantástico- , oriundo de “[...]costumes, modos de vida, de estruturas coletivas de pensamento que simplesmente não serão os seus”, como comenta Jacqueline Held (1980: 35).

A regularidade dos temas/ significações veiculadas pelo ima­ginário na polifonia de sua produção textual faz-nos lembrar o que Foucault designa “nível de homogeneidade enunciativa”,

“[...]que tem seu próprio corte temporal e não traz com ela todas as outras formas de identidade e diferenças que podem ser demarcadas na linguagem; neste nível, ela estabelece um ordenamento, hierarquias e todo um flo­rescimento que excluern uma sincronia maciça, amorfa, apresentada global e definitivamente.” (Foucault, 1987: 170)

As imagens são igualmente enunciados produzidos pelas for­mações discursivas, e as significações homogêneas se concreti­zam nas práticas sociais, o que é enfatizado por Eni Pulcinelli Orlandi:

“A sedimentaçâo de processos de significação se faz historicamente, produzindo a institucionalização do sentido dominante. Dessa institucionalização decorre a legitimidade, e o sentido legitimado fixa-se entâo co­mo centro: o sentido oficial, literal. [...] A história dos sentidos cristalizados é a história do jogo de poder de/na linguagem.” (Orlandi, 1988: 21)

Se Jacqueline Held (1980) intitula seu livro O imaginário no poder, Gilberto Durand (1984: 12) afirma que o imagináno É o poder. Os bens simbólicos produzidos pelo imagináno, na anáhse de Baczko, sâo e objetos de luta e disputa social, em todos os níveis onde se manifestam relações de poder, ou seja, percorrendo toda a trama do tecido social:

“É assim que qualquer poder procura desempenhar um papel privilegiado na emissão dos discursos que vei­culam os imaginários sociais, do mesmo modo que tenta conservar um certo controle sobre seus circuitos de difusão.” (Baczko, 1985: 313)

Todo poder engendra formas de resistência, e um contra-ima­ginário faz-se assim presente, tomando para si muitas das modali­dades do imaginário transformador, aquele que cria dispositivos simbólicos outros, para assegurar a legitimidade de novas rda­ções de poder. (Baczko, 1985: 314). Ou seja, o imaginário instaura relações de senti­do, paradigmas que se apresentam como verdades. Estas seriam, segundo Foucault, “[...] um conjunto de procedimentos re­guladores para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados”. (Foucault 1979: 14)

De fato, para este autor, os discursos funcionam dentro de um “regime de verdade”, ligado a  poderes que a produzem induzindo e reproduzindo efeitos de assujeitamento. Por outre Iado, se o discurso é prática, na ótica foucaultiana, “[...] o campo de enunciados não é um conjunto de plagas inertes, es­candido por mornentos fecundos; é um domínio inteiramente ati­vo”. (Foucault,1987:314)

 Assim, no domínio do interdiscurso, os enunciados concebem formas/imagens/rpresentações/sentidos/prâticas veiculado­ras de novas ordens do discurso; anunciadoras, por sua vez, da circulação de novas fronteiras de “verdade” e dos efeitos de poder que são por elas veiculados.

A meu ver, a ambigüidade do imaginário contém as catego­rias de criatividade e produtividade explicitadas por Eni P. Orlandi :

“A produtividade se dá pela obtenção de elementos va­riados através de operações que são sempre as mesmas, que incidem recorrentemente, e que desta forma, procuram manter o dizível no mesmo espaço do que já está instituído (o legítimo, a paráfrase). A criatividade instaura o diferente na liguagem, na medida cm que o uso pode romper com o processo de produção domi­nante de sentidos, e na tensão da relação com o con­texto histórico-social, pode criar novas formas, novas verdades, novos sentidos. Pode realizar uma ruptura, um deslocamento em relação ao dizível.” (Orlandi, 1988: 20)

O imaginário opera, portanto, em dois registros: o da paráfra­se, a repetição do mesmo sob outro invólucro; e o da polissemia, na criação de novos sentidos, de um deslocamento de perspecti­vas que permite a implantação de novas práticas. Assim, o imaginário, em suas duas vertentes, reforça os sistemas vigentes/insti­tuídos e ao mesmo tempo atua como poderosa corrente transformadora.

Neste sentido, distingue-se o imaginário da noçâo de mentali­dade que representaria apenas o domínio do adquirido, transfor­mável na longa duração, mas distante desta noção de força trans­formadora/sancionadora.

Domínio das imagens impressas, conotativas/denotativas, das imagens poéticas, literárias/teatrais, ou das imagens iconográ­ficas, que vão da pintura/escultura, ao cinema/vídeo/publicidade, o imaginário formula o real e pelo real é trabalhado, num cons­tante movimento de circularidade.

Bachelard  não hesita em apontar os caminhos do sonho e do devaneio para o estudo do imaginário. Afinal, o que seria da vida e da ciência sem o sonho? Afirma este autor que “[...]em seu nascimento, desenvolvimento, a imagem é, em nós, o sujeito do verbo imaginar. EIa nâo é seu complemento. O mundo vem se imaginar no devaneio bumano.”( Bachelard 1943: 22)

Por sua vez, Gilbert Durand indica que     

“a experiência da imagem ativa, da imagem poéica co­mo do símbolo religioso, faz-nos penetrar em um ‘uni­verso outro’ onde o espaço fenomenal foi abolido; [...] é a modalidade do mundo imaginalis, esta gigantesca trama urdida dos sonhos e desejos da espécie e aonde vem se prender, a despeito delas, as pequenas realida­des cotidianas.” (Durand 1984: 16)

Esta imagem ativa atua, portanto, como um cadinho alquími­co, Athanor transformador de desejos/temores/esperanças, em re­des simbólicas, redes de sentido, construtoras de práticas/valores/ nonrmas/paradigmas. Baczko  afirma que

“[...] os imaginários sociais fornecem, deste modo, um sis­tema de orientações expressivas e afetivas, que corres­pondem a outros tantos estereótipos oferecidos aos agentes sociais: ao indivíduo relativamente ao grupo social, aos grupos sociais relativamente à sociedade global, às suas hierarquias e relações de dominação, etc.” . (Baczko 1985: 311)

 

                . Símbolos e significações

Os símbolos e sua manipulação ritualística são, assim, insepa­ráveis da produção do imaginário social, povoado de forças oníri­cas e energias afetivas, igualmente inseparáveis do assentamento dos intrincados desenhos que constituem a definição dos poderes cm uma sociedade qualquer. Castoriadis explicita que “[...] a significação imaginária social faz ser as coisas como tais coisas, coloca-as como sendo aquilo que são — o aquilo que, sen­do posto pela significação, é indissociavelmente princípio de va­lor, princípio de ação”. (Castoriadis 1985: 103)

Os sistemas de significações simbólicos aparecem-nos assim objetivadores/instauradores de relações de força, contra­riamente à óptica de Bourdieu (s/d: 14), que encontra sua eficácia na dissimulação das relações de força ali expressas em relações de sentido. Estas relações de sentido, entretanto, não escondem realidades; criam-nas. Naturalizam imagens e valores em situações históricas precisas, fazendo apelo à memória coletiva, a tra­dições ritualísticas, que conferem o selo de autoridade divina ou cïentífica a esquemas sociais dados, à circulaçào de verdades aceitas como tal.

O imaginário social e sua expressão simbólica atualizam, deste modo, sua ação ambígua e polivalente, instaurando/elimi­nando poderes, criando/determinando valores, revigorando/desa­tivando tradições, evocando razões ou divindades. O dinamismo dos poderes articulados em torno do dispositivo simbólico de uma forrnação social assegura sua permanência e/ou desintegração, nos diferentes níveis em que é estruturado.

De fato, as relações entre sexos, raças, grupos, não se modi­ficam, necessariamente, se as relações de classe, por exemplo, fo­rem subvertidas. Ou seja, nunca é demais sublinhar que, se uma parte do dispositivo simbólico se esfacela, isto não leva à sua de­composição global. Assim, a transferência dos polos de poder polftico não acarreta uma transfonnação global das tramas do imaginário social; as relações entre os sexos cm alguns países, como a Albânia e a Argélia, são o exemplo indiscutível do poder do imaginário nas formações sociais, onde, após a implantação da ordem socialista, as mulheres foram, grosso modo, reenviadas à ordem corânica, aos véus e à clausura, revitalizando o poder mas­culino autorizado pela religião.njh

A ação do imaginário social e seu sistema simbólico instituí­do, com sua disposição de sonhos/devaneios, com sua produção específica ligada à arte, à poesia, à literatura, é eminentemente política. A posse do controle do imaginárioo é, pois, uma peça es­sencial do dispositivo do poder — e do poder político cm seu sen­tido mais amplo. que contempla o funcionamento da sociedade como um todo. Para Jacques Le Goff (1986: XVIII), o estudo do imaginário e seu arsenal simbólico representa o aparecimento de uma nova história política. Baczko (1985: 311) estima que “[...]os mais notâveis dos sfmbolos estào ancorados em necessidades pro­fundas e acabam por se tornar uma razão de existïr e agir para os indivíduos e para os grupos sociais”. (Baczko (1985: 311

Assim, encontra-se o imaginário em toda formação social co­mo solo elementar de sua construção, traçado simbólico que or­ganiza as forças constitutivas de um sistema histórico determina­do. Tomando ainda como exemplo as relações entre os sexos e seus papéis paradigmáticos construídos socialmente (gêneros), percebe-se que a filosofia, (Hegel, Rousseau, Comte, entre ou­tros), a religião (Biblia, Corão) e seu corolário político instauraram, nas sociedades ocidentais, uma predominância masculina que passa a ser considerada natural. Isto significa que os paradigmas criados no âmbito do imaginário atuam efetivamente, organizando uma sociedade dividida além da fórmula œdutora rico/pobre, capita­lista/proletário, em quadros de poder e força: masculino/feminino forte/fraco, nornal/patológico, verdade/mentira, real/ilusório, ativo/passivo, heterossexual/homossexual, certo/errado, branco/ negro, bom/mau, belo/feio, jovem/velho e assim por diante.

Estas classificações atravessam a sociedade como um todo, numa complexidade que ultrapassa, evidentemente, a simples di­visão cm classes sociais, desenvolvendo dispositivos de controle, repressão, sistemas normativos, direitos e deveres; padronizando comportamentos/atitudes criando as formas dos excluídos e dos marginais. Desta forma, até os anos 1970, no próprio domínio da histôria, encontramos um discurso etno e androcêntrico, situação que, entretanto, vem se modificando diante dos questionamentos do feminismo e de Foucault, além dos horizontes abertos pela história das mentali­dades  quanto a objetos e fontes. Entretanto, o imaginário não é, a meu ver, o determinante “em úlltima instância”; não caiamos numa ingênua troca de fatores ma­teriais/imateriais, o que representaria ainda a perspectiva de cisão entre as duas instâncias. Vemos o imaginàrio e o real   longe da ótica dicotômica falso/verdadeiro, anacrônica e destituída de interesse.

Claude Gïlbert Dubois  afirma que as pretensões realistas baseiam-se em “[...]manifestações de um imaginário espe­cuiar, que consiste na crença em que a imagem dá acesso a um    real objetivo, enquanto ela encena mn teatro interno, materiali­zando o desejo do sujeito”. (Dubois 1985: 30) Assim, para este autor,

“[...]a realidade do objeto não é senão uma hipótese indispensável à expressão do desejo” e uma das características deste imaginârio mimético é fi­nalmente sua recusa da dimensão do irnaginário, pretendendo ser o único acesso ao real.( Dubois, 1985:27)

A realidade, portanto, não se impôe ao sujeito, mas é também por ele moldada, sem polarizações, numa atividade criadora circular.

A metodologia científica vem desmistificando sens caminhos, na medida em que percebe a impossibilidade de se atingir um núcleo final de verdade e de essência — física, histórica, biológica, moral. Percebe, igualmente, que sua autoridade repousa sobre um sistema de crenças/solidariedades, pertinências, receptividade. Ou seja, depende, para se afirmar, das condiçôes de possibilidade das representaçôes hegemônicas em determinado momento.

Encontramos, desta forma, o imaginário e o real não como opostos, mas como dimensões formadoras do social, em um pro­cesso atualizador imbricado; imaginário e real não se distinguem, senão arbitrariamente.

Baczko  explicita que “[...]nenhuma relação social e [...] nenhuma instituição política são possíveis sem que o homem prolongue sua existência através das imagens que tem de si pró­prio e de outrem”.( Baczko 1985: 301)  Assim, o dispositivo simbólico que acompanha a produção do imaginário social é objeto de lutas e disputas na institucionalização social. “Governar é fazer crer”, sentencia o aforismo lembrado pelo mesmo autor.

Nesta perspectiva, o domínio da comunicação, a mídia em nossa época, são um locus privilegiado de produção do imaginárino social e seu corolário, o poder, em suas mais diferentes moda­lidades — jornais, rádio, televisão, vídeo, cinema, música, etc ,criando todo tipo de representação/imagem/sentidos, reelaboran­do ou ressemantizando enunciados, ou introduzindo novos valores/costumes/esperanças/ideais. O emocional, as pulsões, os de­sejos, são interpelados, nâo numa ótica de fuga à realidade como pretende Mafesoli (1984: 64), mas, ao contrârio, como sedimenta­ção afetiva em torno de esquemas tradicionais ou apelo à renova­ção da imagética presente historicamente. Salvador Dali, Max Ernst, Miró, Magritte, Picasso, Tzara, o dadaísmo em geral, o cubismo, o surrealismo, com sua escrita automática, os Beatles, a bossa nova, são sujeitos—suporte de uma ruptura na ordem do discurso.

É através do imaginário que se expressam, resolvem e repro­duzem as contradições do ser social, no vórtice da criação artísti­co-literária, mas também na banalidade do senso comum, nas tradições religiosas, em todos seus (des)caminhos e formas, enfim. O imaginário aflora, assim, como dimensão e objeto da história e das ciências sociais.

É assim que, em nível lingüístico igualmente, o simbólico, expressão por excelência do imaginário, trabalha o sentido indireto, conotativo. Segundo Todorov ,

“[...]a produção indireta de sentido está presente em todos os discursos, provavelmente dominando por inteiro aI­guns dentre eles - e não os menas importantes-  como a conversação quotidiana ou a literatura.” (Todorov 1978: 11),

A expressão de lugares comuns, os aforismas, as anedotas, as charges, o humor em geral, são formas de linguagem que traba­lham a simbologia lingüística (sentido indireto, conotação) sem cessar, decodificando papéis, paradigmas, funçõess, valores, per­mitindo traçar os meandros do imaginário num momento histórico preciso. O discurso escrito e falado distila imagens tão precisas quanto quadros de uma exposição, dentro, entretanto, de uma óti­ca polissêmica, cujos detalhes aparecem segundo as condições de possibilidade do leitor/interlocutor/crítico/intetpretador. Como sublinha Barthes

“[...] quanto mais plural o texto, menos ele é escrito,  antes de ser lido.[...] Este eu que se aproxima do texto é, ele mesmo, uma pluralidade de outros textos, de códigos infinitos, ou mais exatamente, perdidos  ( dos quais a origem se perde).) Barthes , 1970: 16)

           O simbolismo, entretanto, transborda o domínio lingüístico e, ainda segundo Todoror,

“[...] o simbolismo que repousa sobre a memória coletiva é aquele que os modernos dicionários dos símbolos tentam classificar , sejam quais forem sua inspiração ou ambição. É também um instrumento indispensável às interpretações religiosas ou psicanalíticas.”( Todorov, 1978:63)

Para Gilbert Durand, a imaginação simbólica está presente quando o signo só pode referir-se a um “sentido”e não a uma “coisa”sensível:

“Não podendo figurar o infigurável, a imagem símbólica é transfiguração de uma representação concreta por um sentido sempre abstrato. O símbolo é , portanto, uma representação que faz aparecer um sentido secreto. É a epifania de um mistério.”( Durand, 1964:10/13)

O símbolo seria assim marcado por uma inadequação fundamental, significante/significado “infinitamente abertos” .( Durand, 1964:13)

A repetição, o reaparecimento de símbolos em épocas e locais inteiramente diversos ( por exemplo,: serpente,  pássaro, montanha, os quatro elementos, árvore, lua , estrelas, espiral, cruz, etc) é chamada por Durand de redundância, preenchendo indefinidamente sua inadequação, sua ausência de referente preciso. Assim, uma “constelação”, um  “enxame” de símbolos sobre um tema vem dotá-los de significado uns pelos outros, trazendo-lhes “um poder suplementar”, como enfatiza Durand. () (1964:15)

Esta repetição dos significantes simbólicos constrói sistemas cujos significados enraízam-se numa situação histórica peculiar,eivada de sonhos, medos, representações, aspiraçâes. Ou seja, a constatação da redundância simbólica verifica igualmente sua in­finita e histórica tarefa de adquirir significados, novo Sísifo que a cada vez carrega uma pedra diferente, de uma diferença sem fun­do nem origem. O símbolo congrega, portanto, elementos empíri­cos, oníricos, sincrônicos/diacrônïcos, permanentes/efêmeros, trabalhando níveis de inconsciente e rnemória coletiva, assim co­mo aspectos conjunturais e imediatos. Esta duplicidade constituti­va do símbolo e suas redes de sentido fazem dele uma expressão de singular eficácia nas manifestações do imaginário social.

Para Dubois , o imaginário simbólico, que se opõe ao especular, niimético, é

“[...] um modo de significação constituído em linguagem, não a partir de signos lingüísticos, mas de imagens significantes:é o funcionamento individual e coletivo das imagens organizados em sistemas significantes.”( Dubois 1985: 18)

Bachelard  ousa reivindicar o direito ao sonho e trabalha com a categoria imaginaçâo já nos anos 1930: recusa a ïmaginação cópia, tributária do objeto e do conceito, para pe­netrar na imaginação criadora, cuja expressão simbôlica e artística ultrapassam tempo e espaço: “[...]...com o lápis na mão, face às tre­vas dos tempos antigos, muito antigos, Marc Chagall não tem 5000 anos? Ele vive no ritmo de milênios. Tem a idade daquilo que vê.” (Bachelard 1985: 11)

A esta imaginação dinâmica, criadora, Bachelard (1943: 21) denomina “imaginaçâo material” , sempre ligada a um dos quatro elementos - água, fogo, ar,  terra - fundadores do devaneio, atua­Iizadores do sonho e da imagem; movimento “[...] onde se compreen­de que a realidade é uma potência do sonho e o sonho é uma rea­Iidade”.  (Bachelard 1943: 21) É esta imaginaçào material que procura aprofundar o ser em seus mais recânditos escaninhos, que trabalha o inconsciente tomando impulso num elemento material.           

Para o mesmo autor , estas forças imaginantes sâo pro­dutoras de formas, em nós e na natureza, e estas formas sâo te­cohidas intemamente, germes onde a imaginação material desen­volve as forças reveladoras das formas internas. Para este autor, o que interessa examinar é “a imanência do imaginário ao real, o trajeto contínuo do real ao imaginârio”.( Bachelard 1942: 1)

Por outro lado, este movimento imanente e transformador da realidade aparece como um

“[...] psiquismo precursor que projeta seu ser.[...] Nesta transposição, a imaginação faz surgir uma destas flores maniqueístas que misturam as cores do bem e do mal, que transgridem as leis mais constantes dos valores humanos. Colhem-se tais flores nas obras de Novalis, Shelley, Edgar Poe, Baudelaire, Rimbaud, Nietzsche. A cultivá-las, tem-se a impressão de que a imaginação é uma das fornas da audácia humana. (Bachelard 1943: 13)

A força do imaginário, das imagens que afloram na lingua­gem e modelam os sentidos dos enunciados é perfeitamente per­cebida por Bachelard (1943: 10) já em 1943: “Para bem sentir o papel imaginante da linguagem, é preciso pacientemente buscar, Em todas as palavras, o desejo de alteridade, o desejo de duplo sentido, o desejo de metáfora.” ( Bachlard, 1943:13) E, ainda, trabalhando a relação linguagem/imaginário: “[...]os estudos sobre o imaginário dlinâmico devem contribuir para por em movimento, em vida, a imagem ín­tima escondida nas palavras.[...]Nas palavras usadas, a imagem dinâmica deve reencontrar as forças escondidas.” (idem)

Dizer é agir, e dizer é criar imagens cm movimento; é objeti­var representações, é esculpir desejos que se transferem infinita­mente de um significante para outro, marcados por uma ausência que insistem cm suprir.

Para Bachelard , mestre de Foucault, a linguagem é receptáculo de um florilégio de imagens novas, transformadoras, que transmitem ecos inesperados das ressonâncias produzidas no trajeto das viagens imaginárias:

Elas vivem da vida da linguagem vivente.

[...] Elas nos revitalizam. Através delas a palavra, o verbo, a li­teratura sâo promovidos ao nível da imaginação cria­dora. O pensamento, expressando-se em novas imagens, se enriquece, enriquecendo a lfngua; [...] a pala­vra revela-se o devir imediato do psiquismo humano. (Bachelard 1943: 9)

Assim, as forças psíquicas e afetivas evocadas pcb imaginá­rio passaram a compor a polifonia das vozes fundadoras do discurso social, na junção das “práticas discursivas e não-discursivas” que, como explicita Foucault, estabelecem as fronteiras de uma formaçâo discursiva. Revelam-se diminutas as querelas e des­qualificações do discurso de outrem a respeito da origem destas forças - arquetípicas, coletivas, individuais, relacionais-  face a este enorme poder que se agiganta: o do inconsciente.[5]

Dentre as produções do imaginário contcmporâneo, os dese­nhos animados, videogames, revistas em quadrinhos, ficção científica, reatualizam narrativas míticas cm torno de paradigmas seculares, como, há al­gum tempo, faziam-no os contos de fada e as epopéias heróicas. Deste modo, na técnica, o universo mítico revive sua expansão figurativa ou representativa, encarnando heróis, seres serni-divi­nos, semi-humanos, obras, dores, feitos, amor e ódio, bem e mal, as hutas entre deuses e mortais instaurando modelos e criando funções.

                 . mitos na ordem do imaginário

Segundo Gusdorf , a reativação das narrativas miticas imbrica-se estreitamente ao cotidiano do presente, numa totalidade que “[...]se nos oferece na perspectiva de nossas virtuali­dades e de nossos impulsos sob a forma de mitos mais ou menos desenvolvidos, que nos dão, de cada vez, uma leitura do universo segundo a chave de tal ou qual de nossos valores”. (Gusdorf 1980: 241) Assim, o mito reinventado/investido peoo tempo presente é dimensão, objeto e fonte da bïstória.

Na verdade, as exigências dos movimentos de ruptura, como o feminismo, apontam para as virtualidades de uma história im­pensável e impensada, obscurecida pela projeção positivista de imagens naturalizadas em milênios de histôria humana: por exemplo, como teria sido a construçào dos gêneros, em socieda­des onde a força criadora universai adota a imagem do feminino? O imaginário criador de uma “grande deusa” - senhora dos deu­ses, do universo, da vida e da morte - foi interpœtado e desquali­ticado pcb discurso judaico-cristâo e seu corolário acadêmico como sinal de primitivismo e de inferioridade, depois de ter esta­do vivo por 25 milênios em todo o mundo.’[6]

É inegável que a Bíblia é um dos discursos imaginários instauradores da ordem pa­triarcal, sob o selo da verdade, da autoridade, do inquestionável, estabelecendo um regime de circulação de enunciados “verdadeiros”, excludentes, criadores de uma certa ordem social. Nestes ca­sos, as narrativas míticas aparecem como fontes privilegiadas na aproximação de sociedades pobres em documentação ou sujeitas a interpretaçâes estereotipadas e etno/androcêntricas.

Evidentemente, o sermo mythicus não nos trará a reprodução, nem o reflexo de uma fonnação social dada; a análise deste dis­curso, porém, na ótica que vimos apresentando, pode desvelar as relações de sentido e de poder existentes na evocação mítica, ou seja, seu regime de verdade, as condiçôes de produção que per­mltiram que tais discursos aparecessem naquele momento, ou se­gundo a célebre fórmula de Foucault , “o que é dito”,  “para quem”. “de onde” e “por quem” é dito. Em outras palavras:

“Sabe-se bem que não temos o direito de tudo dizer, que não po­demos falar de tudo em qualquer circunstãncia, que qualquer pes­soa, enfim, não pode falar de qualquer coisa.” (Foucault, 1971: 11)

    Desta maneira, le­vando-se em conta a interpelação emotiva, pulsional, a mobiliza­çào do desejo que preside a atualização da narrativa mítica, ve­mos desenharem-se novos jogos de sombra e luz que compõem a história, ordenados pela interpretação do presente, sujeita às suas prôprias condições de produção. Segundo Paul Ricoeur

“[...] é na medida cm que o mito institui a ligação dos tempos históricos com o tempo primordial que a narração das origens ganha valor de paradigma para o tempo presente: as coisas foram fundadas assim na origem e continuam hoje da mesma ma­neira. Pela sua intenção significante fundamental, o mito permite ser repetido, reativado no rito”. (Ricoeur , 1988: 22)

A ressemantização do mito, assim, fundamenta tradições e costumes, pois “teriam sempre sido assim”.

O imaginário religioso, nesta ótica,  baseia, instiga, corrobora ordens instituídas, sob o signo do “natural” e do “verdadeiro”. George Dumezil (1986 e 1987), com sua formidável erudição, criou um modelo (  com o reducionismo que comporta todo modelo universalizante) de funcionamento do imaginário reilgioso, a “ideologia das três funções”, traçando uma relação entre o panteão indo-eu­ropeu e suas instituições sociais. Georges Duby  trabalha igualmente a imagem trifuncional, tentando traçar a história de uma certa imagem da ordem social que atravessa o tempo:

“[...]A figura triangular sobre a qual, nos espíritos dos bispos do ano 1000 se   construiu o sonho de uma socieda­de una e trina como a divindade que a criou e a julgará [...]; e é atravds desta mesma figura triangular que no nosso tempo [...] persiste a nostalgia de uma humani­dade regenerada [...]. Trinta, quarenta gerações suces­sivas imaginaram a perfeição social sob a forma da tri­funcionalidade. Esta representação mental resistiu a todas as pressões da história.” (Duby, 1982: 16)

Interpretações já clássicas trabalham, portanto, a dimensão do mmaginánio na análise da ordem social: o princípio de autoridade enunciativa mais uma vez funcionou na academia, sancionando este tipo de abordagem, ainda há pouco considerada fantasiosa.[7]

Na imagética do tempo presente, a imprensa dita feminina ou masculina nâo cessa de atualizar imagens naturalizantes do sexo e da ordem familiar, paradigmas instituídos sob novas roupagens, sob o signo do Pai. Nelas, as relações de sentido não deixam aparecer a trama valorativa/moral instauradora de uma ordem normativa arbitrária e histórica. As revistas em quadrinhos como A espada selvagem de Conan, o bdrboro por exemplo, ou Vampirella, dentre centenas de outras, as novelas de televisão, filmes, desenhos animados, etc,  sâo inesgotáveis em reativar narrativas míticas, rea­firmando  modelos sociais vigentes. Transferem-se os canais veiculadores, mas os mitos estão presentes na ordem social, ao lado dos ritos renovadores de ordem espiritual ou cósmica, como a comunhão cristã ou as festas de ano novo.

Para Ricoeur , os mitos tem função essencial de instauração, através de suas representações variáveis pois “[...]um mita de origem pode tornar-se não apenas mn mita fundador no passado, mas um mito de toda fundação de futuro”. (Ricoeur 1988: 27),  A seqiiência significante é, portanto, “[...] primeiramente a história fundamental. depois o paradigma, seguido da repetiçâo ritual”.’ (Ricoeur 1988: 23)

Ainda segundo o mesmo autor,“[...]viver segundo um mito é deixar de existir apenas na vida quotidiana: o recitativo e o rito constróem aquela interiorização emocïonal capaz de criar o que podemos chamar o núcleo mito-poético da existncia humana”. (idem)

Nesta mesma perspectiva, pode-se observar a efusão mítica na ordem do sobrenatural, teológico, cosmológico, mágico, astrológi­co, épico, assim como na produção discursiva e imagética da mí­dia, pois “os mitos desenham a apreensâo do pensamento, do de­sejo, da imaginaçâo, sobre a totalidade do ser”. ( Gosdorf 19S0: 241)

As modernas epifanias políticas, as revoluções, a ordem espi­ritual usam e manipulam o imaginário social, criando novos ou   utilizando os dispositivos simbólicos anteriores, pois, como subli­nha Castoriadis “[...]as instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbóhco”. (Castoriadis,1982: 142)

O mito político congrega forças positivas/negativas, tocando as fibras do pavor e do deslumbramento. Assim são recorrentes as temáticas do maléfico complô ou a sagrada conspiração, o paraíso perdido ou a mítica comunidade perfeita de “paz e igualdade” dos messianismos revolucionários, corno assinala Giraidet (1987:16-17).

 O Estado perfeito, de Hegel, atingido após longa evolução histórica e seu conesponderîte marxista, estão, ao Iado da Ilha, de Huxley, ou a Utopia, de More, recuperando o mito da Idade de Ouro, que aparece tanto na cosmogonia egípcia como na grega e na bíblica. “Qual seria o destino de um marxismo destituído de todo apelo profético e de toda visão messiânica, reduzido exclu­sivamente aos dados de um sistema conceitual e de um método de análise?”, pergunta Girardet (1987: 11).

O imaginário, assim, através de sua rede simbólica dissemi­nada, desconstrói os horizontes das formações sociais, dotando os significantes vazios de desejos, de signiflcações singulares, atua­lizando a reversibilidade das imagens, despertando ressonâncias que encobrem, par momentos, sua infnita polifonia.

Para Lévi-Strauss , “[...] o conjunto de mitos de urna população está na ordem do discurso; a menos que a população se extinga fisicamente, este conjunto nunca serâ fechado”.(Lévi-Strauss,1964: 15) Para este autor, o imaginário e sua produção mitológica são comparados à música, na qual

“[...] o desígnio do compositor se atualiza, como o do mito, através do ouvinte e por ele. Em um e outro caso, observa-se, com efeito, a mesma inversão da relação entre o emissor e o receptor; pois é, em fim de contas, o segundo que se descobre significado pela mensagem do primeiro: a música vive em mim, eu me escuto através dela. O mito e a obra musical aparecem assim como maestros, cujos ouvintes são os silenciosos executantes.” ( Lévi-Strauss, 1964: 25)

Seja atualizando mitos , reproduzindo ritos e narrativas fundadoras, abrigando imagens e representações  produzidas histórica e socialmente, o imaginário concentra-se em núcleos hegemômicos e abre espaço, ao mesmo tempo, para a formação de resistências , para um contra-imaginário que vem traçar caminhos de transformação.

Atravessando e  constituinto as for­mações discursivas, instaurando paradigmas e papéis, criando normas, valores e verdades, determinando as fronteiras e margens, indicando os níveis de tolerância/absorção, traçando estra­tégias, projetando cores e tons, o imaginário  social, em sua ambigüidade fundamental, explora os obscuros traçados do desejo,  criador/criatura, construtor/construído, campo privile­giado de apreensão do social.

 

Referências bibliográficas

ARASSE , Daniel.(1987)  La guillotine ou l’Imaginaire de la terreur, Paris, Champs/Flammarion.

BACHELARD, Gaston  (1985) O direito de sonhar. São Paulo. Difel.

BACHELARD, Gaston (1942) L’eau et les rêves-essai sur l’imagination de la matière, Paris, José Corti.

BACHELARD, Gaston (1943) L’air et Les songes. Paris, José Corti

BACZKO, Bronislaw (1985) A imaginação social’. Enciclopédia  Einaudi (ed. Portuguesa), lmprensa Nacional/Casa da Mœda.

BAKTHIN, Mikhail Wolochinov (1990) Maxisme  e fiiosofia da linguagem.  São Paulo, Hucitec.

BARTHES, Roland (1970) S/Z. Paris, Seuil.

BORDIEU. Pierre (s/d) O poder simbólico. Lisboa, Difel.

BURKE , Peter(1994). A fabricação do rei, R.J., Zahar.

CASTORIADIS, Cornelius (1982) A insttuição imaginária da sociedade. Rio de Ja­neiro, Paz e Terra.

CASTORIADIS. Cornelius (1985) Os destinos  do totalitalitarismo  e outtros escritos. Porto Alegre, L&PM.

CHARTIER,[1]Roger Chartier (1990). História Cultural  , entre práticas e representações , Lisboa, Difel

DELUMEAU, Jean (1978) La peur en Occident:XIVè—XVIJIè siècles. Paris, Fayard.

DETIENNE,  Marcel et VERNANT, Jean-Pierre  (1987) La cuisine du sacrifice en pays grec, Paris, Galimard,

DETIENNE, Marcel .(1981) L'invention de la mythologie , Paris, Galimmard

DETOELJF, Marie Simone (1986) La danse de l’univers. Paris, Glacs.

DIJRAND, Gilbert (1984) “Exploração do imaginário”. Em Pitta, Danielle Penn R.(Org.), O imaginário e a simbologia de passagem. Recife, Massangana.

DUBOIS, Claude-Gilbert (1985) L’imaginaire de la Renaissance. Paris, PUF.

DUBY, Georges. (1982) .As três ordens ou o imaginário do feudalismo, Lisboa, Estampa

DUBY. Georges (1982) As très ordens ou O imaginário do feudalismo, Lisboa, Estampa.

DUMÉZIL, Georges (1986)Les dieux souverains des indo-européens, Paris, Gallimard.

DUMÉZIL, Georges (1987) La religion romaine archaïque. Paris, Payot.

DURAND, Gilbert (964) L’imagination symbolique. Paris, Quadrige/PUF.

FOUCAuLT, Miche! (1987)A arqueologia do saber. RiodeJaneiro,Forense Universitária.

FOUCAULT. Michel (1971) L’ordre du discours. Paris, Gallimard.

FOUCAULT. Michel (1979) Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal.

GIRARDET, Raoul (1987) Mtro e mitologias políticas. São Paulo, Cia. das Letras.

 GUSDORF, Georges (1980) Mto e metafísica. São Paulo, Convívio.

GRUZINSKI,Serge.(1988)  La colonisation de l’imaginaire, Paris, Gallimard

HELD, Jacqueiine (1980) O imaginário no poder as crianças e a literatura fantástica.São Paulo,  Summus.

     JODELET,Denise  Les représentations sociales, un domaine en expansion, dans Denise

    Jodelet (dir)  Représentations sociales, Paris, PUF,  1989   

 JOVCHELOVITCH, Sandra e GUARESCHI,.Pedrinho  (org.)(1974) Textos em Representações  Sociais Petropolis, Vozes

JUNG, Carl Gustav (s/d) Civilization in transition. In Reas, sir Herbert et al. (ed.), T/w collected works, book 10.

KHUN, Thomas (1983) Le structure  des révolutions scientifiques. Paris, Champs/ Flammarion.

LE GOFF, Jacques (1986) L’imaginaire médiéval. Paris, Gallimard.

LE GOFF, Jacques.(1985) L'imaginaire médieval, Paris, Gallimard, e (1981).La naissance du purgatoire, Paris, Gallimard/Folio-Histoire

LÉVI-STRAUSS, Claude (1964) Le cru et le cuit. Paris, Plon.

MAFFESOLI, Michel (1984)A conquista do presente. Rie de Janeiro, Rocco.

MELLO E SOUZA, Laura, O diabo na terra de Santa Cruz, S.P. Cia das Letras

NAVARRO SWAIN, Tania Navarro Swain (1992) Os mitos do descobrimento do Brasil, Revista Humanidades, Brasília, EdUnB, vol.8, n.2 (28)

ORLANDI, Eni Pulcinelli (1988) Discurso e leitura. São Paulo, Cortez.

RICOEUR, Paul (1988) ‘Mito e interpretação filosófica’. Em Grécia e mito. Lisboa, Gradiva.

SEGRÉ, E. (s/d) Les physiciens modernes et leurs découvertes: des rayons X aux quarks. Paris, Fayard.

STONE, Merlin(1979) Quand Dieu était femme. Montréal, Étincelle.

TODOROV, Tzvetan (1978) Symbolisme et interprétation. Paris, Seuil.


 

[1]Geoges Dumézil cria a "teoria  do tri-funcionalismo" com a qual tenta esbabelecer uma correspondência entre a elaboração mítica e a organização do social. Da grande obra por ele produzida , ver, a título de exemplo, La religion  romaine archaique, Paris,Payot, 1987 ;Les dieux souverains des Indo-européens, Paris, Gallimard, 1986,: Fêtes romaines d'été et d'automne, Paris, Gallimard, 1986, : Mythes et dieux des indo-européens, Paris, Flammarion,1992

[2] ver, principalmente, os livros de Gaston Bachelard que se referem aos 4 elementos: água, terra, ar e fogo, já traduzidos para o português. La terre et les rêveries du repos, Paris, José Corti, 1948 ;  La terre et les rêveries de la volonté, Paris, José Corti, 1947 ; L'eau et les rêves, Paris, José Corti,1942 ; L'air et les songes, Paris, José Corti, 1943 ;  La psychanalyse du feu, Gallimard (Folio/Essais), 1949.

[3] A obra de Roger Caillois conta com mais de 20  títulos, apenas nas Editions Gallimard. Reflete sobre a produção específica do imaginário, tal como a poesia, o romance, o sonho, o sagrado, o mito, etc. A título de ilustração, indicamos  Approches de l'imaginaire, Paris, Gallimard, 1977.

[4]Conferência pronunciada na Univeeridade de Brasília, em outubro de 1994, por iniciativa do CLIIHO - Circulo de Leitura e Investigação sobre Imaginário e História Oral, grupo de estudos do Departamento de História.

[5]     Ver cm Le Goff (1985: VI), nota 1  a desqualificação espressa pelo autor em rela­çâo à noção de arquétipo de Jung e à obra de Gilbert Durand, indicando ser a sua própriaperspectiva a única válida para o estudo do imaginário, dentro de caminhos de ra­cionalidade.

[6] Ver, a este respeito, o excelente livro de Merlin Stone (1979) ver também, neste volume: “Deusas e bruxas: dos silêncios significantes à fumaça das fogueiras”

[7] A ótica sob a qual vemos o imaginário distancia-se deste aspecto de modelos que atravessam os tempos, a-históricos,  supondo de alguma forma estruturas imutáveis do humano. Vemos o imaginário desdobrando-se em redes de significação pontuais, singulares, que ressematizam ou reatualizam imagens ou enunciados conferindo-lhes um sentido próprio , em cada formação social específica.